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Cad. Brás. Ens. Fís., v.
19, n.3: p.407
-
410
, dez. 2002.
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A PREMISSA METAFÍSICA DA REVOLUÇÃO
COPERNICANA
+*
Contribuição ao arti
go
A invisibilidade dos pressupostos e das limitações da teoria
copernicana nos livros didáticos de Física (Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v.
19, n. 1: p. 29
-
52, abr. 2002).
Fernando Lang da Silveira
Instituto de Física
UFRGS
Porto Alegre
RS
O artigo aponta, de forma clara e consistente, a omissão dos livros-texto de
Física para o ensino médio em explicitar os pressupostos da teoria copernicana, bem
como as críticas que o heliocentrismo sofreu
1
. As objeções ao movimento anual da
Terra (translação em torno do Sol) e diário (rotação em torno do seu próprio eixo),
como bem destacam os autores, não foram resolvidas por Copérnico e tiveram que
aguardar pelo desenvolvimento da Mecânica por Galileu, Newton e outros cientistas
nos séculos seguintes
2
.
Os autores arrolam um conjunto de sete pressupostos astronômicos, sobre
os quais o sistema copernicano foi erigido. O objetivo do presente comentário é
destacar que, a esse conjunto de sete pressupostos astronômicos, adita-se uma
tremenda premissa metafísica (Burtt, 1991; p. 40), certamente não cogitada em
nenhum dos livros-texto. Na verdade as sete conjeturas astronômicas somente foram
+
The metaphysical premise of the Copernican revolution
*
Recebido:outubro de 2002.
Aceito:novembro de 2002.
1
Uma pesquisa em livros-texto de Física Geral para o ensino superior certamente chegaria a um
resultado semelhante.
2
A
prova do movimento anual da Terra a paralaxe das estrelas fixas foi somente
observada em 1837, por Bessel. A prova do movimento diário da Terra aconteceu mais
tardiamente: em 1851, Foucault construiu o pêndulo que leva o seu nome, demonstrando
experimentalm
ente que, devido à rotação da Terra, o plano de oscilação do pêndulo (no sistema
da referência da Terra) se altera. Entretanto, muito antes da ocorrência de tais
provas ,a
resistência à teoria copernicana já não mais existia. Uma explicação para tal atitude pode ser
encontrada em Lakatos (1989).
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Silveira, F. L.
possíveis como conseqüência dessa premissa.
O que levou Copérnico a tirar o centro do
mundo da Terra e colocá-lo nas proximidades do Sol? Vejamos como alguns autores se
pronunciam sobre esta pergunta:
Sua idéia de colocar o Sol, em lugar da Terra, no centro do
Universo, não resultou de novas observações, mas sim de uma nova
interpretação
de fatos bastante conhecidos há muito tempo, à luz de
concepções semi-religiosas, platônicas e neoplatônicas
(Popper,
1982; p. 214. Grifo no original.). Para os platônicos e neoplatônicos
oSol
tem a mesma função no Universo das coisas visíveis do que
a idéia do bem no universo das idéias
(Popper, 1984; p. 214).
O
Sol, por conferir luz, vitalidade, crescimento e progresso às coisas
visíveis, deve ocupar o status mais elevado na ordem das coisas da
natureza.
Se o Sol tinha um papel tão importante, se merecia o
status de divino (...), não poderia girar em torno da Terra. O único
local apropriado para uma estrela de tal nobreza era o centro do
Universo. Por isso, a Terra devia girar em volta do Sol
(Popper,
1984; p. 214).
Certamente nenhuma posição inferior no espaço ou no tempo
podia ser compatível com a dignidade do Sol e com sua função
criativa. (...) As suas fontes (fontes de Copérnico) imediatas são
neoplatônicas
(Kuhn, 1990; p. 155). A motivação de Copérnico
para rejeitar a hipótese geocêntrica era metafísica pois
nenhuma
descobert
a astronômica fundamental, nenhuma espécie nova de
observação astronômica, persuadia Copérnico da imperfeição da
antiga astronomia ou da necessidade de uma mudança
(Kuhn,
1990; p. 157). A teoria heliocêntrica decorreu da concepção
neoplatônica de Copérnic
o.
É evidente, então, que a pergunta que Copérnico respondeu
facilmente dessa maneira (tomando o Sol como referencial)
trazia
consigo uma tremenda premissa metafísica. E ela foi logo percebida
(...)
É legítimo tomar qualquer outro ponto de referência
astr
onômico que não seja a Terra? (Burtt, 1991; p. 40. Grifo no
original.)
Uma passagem do próprio Copérnico explicita de maneira indubitável a sua
inspiração metafísica ao colocar o Sol no centro do Universo:
No meio de todos os assentos, o Sol está no trono. Neste belíssimo
templo poderíamos nós colocar esta luminária noutra posição
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melhor de onde ela iluminasse tudo ao mesmo tempo? Cha
maram
-
lhe corretamente a Lâmpada, o Mente, o Governa-dor do Universo;
Hermes Trimegisto chama-lhe o Deus Visível; a Elec
tra
de Sófocles
chama
-lhe O que vê tudo. Assim, o Sol senta-se como num trono
real governando os seus filhos, os planetas que giram à volta dele.
(Copérnico apud Kuhn, 1990; p. 155)
A mesma fundamentação metafísica o neoplatonismo decidiu que,
posteriormen
te a Copérnico, Kepler e Galileu abraçassem as idéias copernicanas. Um
texto de Kepler serve de exemplo desta corrente neoplatônica:
Em primeiro lugar, a menos que talvez um cego possa negá-
lo
perante ti, dentre todos os corpos do Universo, o mais notável é o
Sol, cuja essência integral nada mais é que a mais pura das luzes
(...), a fonte da visão, pintor de todas as cores (...), denominado rei
dos planetas (...), coração do mundo (...), olho do mundo; por sua
beleza, é o único que podemos considerar merecedor do Deus
Altíssimo (...) Pois se os germânicos elegem como César o que tem
o poder máximo em todo o império, quem hesitaria em conferir
votos dos movimentos celestes àquele que já vem administrando
todos os demais movimentos e mudanças por graça da luz, que é a
sua posse exclusiva? (...) Nenhuma parte do mundo e nenhuma
estrela é merecedora de tão grande honra; então, pelas razões mais
elevadas, voltamos ao Sol, o único que parece, em virtude de sua
dignidade e poder, adequado a essa missão motora e digno de
tornar
-se a morada do próprio Deus. (Kepler apud Burtt, 1991; p.
45
-
46)
Diversos historiadores e epistemólogos têm mostrado que a revolução
científica
na qual Copérnico foi um dos principais protagonistas no século XVI,
culminada com a Mecânica Newtoniana no século XVII
somente foi possível graças a
uma mudança das concepções metafísicas, de uma retomada do platonismo.
A importância das idéias metafísicas no desenvolvimento da ciência, de um
modo geral (não apenas no Renascimento), levou Popper a definir um
programa
metafísico de pesquisa
:
Ao empregar este termo, pretendo chamar a atenção para o fato
de que, em todas as fases
do desenvolvimento das ciências, es
tamos
sob influência de idéias metafísicas, isto é, idéias não testáveis,
idéias que não só determinam os problemas de pesquisa que vamos
escolher, como também os tipos de resposta que vamos considerar
corretos, satisfatórios ou aceitáveis e como melhoramentos ou
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Silveira, F. L.
progressos relativamente às respostas anteriores. (Popper, 1989;
p. 169. Grifo
nosso.)
Conferir visibilidade à premissa metafísica que está na gênese da revolução
copernicana colabora com o intuito dos autores de
melhorar o atual tipo de
abordagem do modelo heliocêntrico conferido pelos livros-texto
(Medeiros e
Monteiro, 2002; p. 46), mostrando que o conhecimento científico não está isento de
influências contextuais e sócio
-
históricas.
Bibliografia
BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna
.
Brasília: Ed. Univer-
sidade
de Brasília, 1982.
KUHN, T. S.
A revolução copernica
na
.
Lisboa: Ed. 70, 1990.
LAKATOS, I. Por qué superó el programa de investigación de Copérnico al de
Tolomeo?
In: LAKATOS, I. La metodología de los programas de investigación
cie
n
tífica
.
Madrid: Alianza, 1989.
MEDEIROS, A. E.; MONTEIRO, M. A. A invisibilidade dos pressupostos e das
limitações da teoria copernicana nos livros didáticos de Física. Caderno Brasileiro
de Ensino de Física
, v. 19, n. 1: p.29
-
52, abr. 2002.
POPPER, K. R. Conjecturas e refutações
.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília
,
1982.
POPPER, K. R. A teoria dos quanta e cisma na Física
.
Lisboa: D. Quixote, 1989.