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A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença?
Carlos Augusto Peixoto Junior
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RESUMO
O artigo pretende confrontar as concepções de desejo nas teorias de Jacques Lacan e Gilles
Deleuze, respectivamente, apresentando algumas diferenças entre um modelo hegeliano, pautado na
lei, na falta e na negatividade, e outro, nietzscheano, baseado na afirmação e na produção. Assim,
torna-se possível pensar em duas formas de subjetivação também diversas, uma centrada na visão
edipiana, e outra proveniente da crítica deste modelo matricial. Com isso, pretende-se ainda
contrapor à idéia de uma transgressão negativa, fundada na renegação da Lei e da ordem, uma
concepção de transgressão criadora ou positiva, baseada na afirmação da diferença.
Palavras chave: Desejo; lei; transgressão; Lacan; Deleuze.
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Introdução
Este trabalho tem como objetivo principal confrontar as concepções de desejo nos
pensamentos de Jacques Lacan e Gilles Deleuze, respectivamente, procurando mostrar, em
linhas gerais, as diferenças entre um modelo pautado na lei, na falta e na negatividade e
outro baseado na afirmação da produção e na positividade do excesso. Com isso
pretendemos também esboçar alguns traços dominantes de duas formas de subjetivação
diversas, a primeira centrada prioritariamente numa visão edipiana, e a segunda,
proveniente da crítica deste modelo matricial. Para delimitar melhor o problema,
gostaríamos de esclarecer desde já que tomaremos como referência maior do pensamento
lacaniano o período que privilegia o registro do simbólico como campo prioritário de
articulação do desejo, assim como as críticas deleuzianas que se dirigem mais diretamente a
este tipo de leitura do conceito. No caso de Lacan, partimos do pressuposto de que é o
pensamento de Hegel que serve de inspiração para a sua compreensão do desejo. Do
mesmo modo, vemos em Nietzsche a referência central para as críticas ao modelo lacaniano
e para a concepção das máquinas desejantes formulada por Deleuze. Traçadas as linhas
gerais de cada uma destas perspectivas, acreditamos que seja possível contrapor à idéia de
uma transgressão negativa, fundada na renegação da Lei e da ordem, uma concepção de
desejo baseada na afirmação da diferença, a qual se caracteriza pelo que chamaremos de
transgressão criadora ou positiva.
Lacan e a negatividade do desejo
Sabe-se que a obra de Jacques Lacan não apenas se apropria do discurso hegeliano
sobre o desejo, mas também delimita radicalmente o seu significado, através da
transposição de certos temas da Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1941 [1807]) para uma
moldura psicanalítica de cunho estruturalista. De acordo com Lacan o desejo não pode mais
ser equacionado através da estrutura fundamental da racionalidade humana como queria
Hegel. Ele também não pode mais ser pensado como aquilo que revela ou expressa a
estrutura reflexiva da consciência, mas, ao contrário, deve ser entendido como um
momento preciso de sua opacidade. Neste sentido ele é justamente o que a consciência em
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sua reflexividade procura dissimular, uma espécie de anseio do qual ela sofre, e que só se
revela nas suas rupturas. O desejo, portanto, não se expressa senão pelas descontinuidades
da consciência e deve ser entendido como a sua própria incoerência interna.
Pensado deste ponto de vista o desejo indica a impossibilidade de um sujeito
coerente, entendido como instância consciente autodeterminada. A significação desta
instância estaria sempre previamente determinada por um significante inconsciente, o qual
escapa às suas pretensões de clareza absoluta. Trata-se aqui do famoso sujeito dividido
lacaniano, separado de sua unidade libidinal originária com o corpo materno, num processo
que supõe o recalque originário como o principal operador da individuação. Assim o desejo
é a expressão de um anseio de retorno à origem que, acaso recuperada, exigiria a dissolução
do próprio sujeito. Segundo Lacan, é justamente esta impossibilidade de recuperação das
origens que faz do sujeito um limite para a satisfação. Na medida em que emerge como
uma contradição interna, fundando-se numa defesa necessária contra a união libidinal
primeira com a mãe, o sujeito é basicamente o produto de uma proibição. Seu desejo é uma
espécie de resíduo daquela união precoce, a memória afetiva daquele prazer anterior à
individuação. Nestes termos, o desejo é ao mesmo tempo um esforço para dissolver o
sujeito que barra o caminho para o prazer, e a evidência atual da impossível recuperação
deste prazer.
Esta contradição interna do sujeito não poderia ser resolvida pela produção de uma
síntese dialética, mas também não pode ser compreendida como um paradoxo insolúvel. Na
verdade, esta barreira ou proibição que separa o sujeito do inconsciente é uma operação
negativa que fracassa em mediar o que ela separa. O que significa que a negatividade do
recalque não pode sequer ser compreendida pela aufhebung (suspensão) hegeliana. Isto é o
que se pode deduzir do famoso debate entre Lacan e Jean Hyppolite em torno do conceito
de verneinung (denegação) (Lacan, 1966, p. 369). Segundo Lacan, a falta característica da
estrutura inconsciente nunca poderia ser tematizada de maneira apropriada, e a denegação
que a incorpora não funciona em termos de uma relação positiva, intrinsecamente
relacionada com o que está sendo denegado, tal como Hyppolite parece sugerir. Ela na
verdade opera através dos mecanismos de deslocamento e condensação, o que implica em
que aquilo que se coloca através do ato de denegação não tenha nenhuma relação necessária
com o que está sendo negado, mas esteja apenas associativamente relacionado com ele.
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Argumentando que a significação do negativo está na dependência do deslocamento
do significado, Lacan afirma que a linguagem que pretensamente representa esta
negatividade só o faz através de seu encobrimento. Nestas condições, de acordo com Judith
Butler, “a positividade da linguagem é uma parte do estratagema da própria denegação”
(Butler, 1987, p. 188), e a representação é em geral compreendida como fundada numa
repressão necessária do inconsciente. A linguagem não é mais entendida como algo que
está internamente relacionado ao negativo, mas como aquilo em que se baseia a divisão do
sujeito do inconsciente e que continuamente provoca esta divisão através dos mecanismos
de metáfora e metonímia.
Lacan critica explicitamente Hegel por restringir sua análise do desejo à
autoconsciência. O resultado desta operação é que o inconsciente se vê desconsiderado
como significante da atividade consciente, e a consciência passa a ser privilegiada como
falso lugar do significante. Na verdade, a divisão entre consciente e inconsciente traria
conseqüências para a obscuridade fundamental do desejo. A opacidade do significante que
determina o “Eu” é o próprio inconsciente enquanto cadeia de significantes, o qual interfere
repetidamente na auto-apresentação coesa e coerente do sujeito consciente. Nesse sentido, o
inconsciente não é concebido topograficamente, mas em termos das várias negatividades –
faltas, furos, fissuras – que marcam o discurso do Eu. Nas palavras de Lacan, “o
inconsciente freudiano (...) se situa neste ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há
sempre claudicação”.(Lacan, 1979, p. 27). O que significa antes de tudo que o inconsciente
aparece primeiramente como um fenômeno em forma de descontinuidade e vacilação
(Lacan, 1966, p. 299).
O inconsciente é portanto o não realizado que só se torna presente no discurso
através de inúmeras hesitações tais como deslocamentos, condensações, denegações e
outras significações metonímicas. Em termos lacanianos “a lacuna do inconsciente pode ser
considerada pré-ontológica” (Lacan, 1966, p. 329) no sentido em que ela precede a
ontologia do sujeito, e constitui um universal inquestionável. Isso porque o inconsciente
delimita o contexto no qual qualquer discurso sobre a ontologia poderia ter lugar. A função
do inconsciente em qualquer sujeito indica esta dimensão universal, embora em nenhum
caso a brecha entre significante e significado venha a ser recoberta, como ocorreria na
hipótese da síntese hegeliana. Deste ponto de vista, “a identidade só se realiza como
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disjuntiva quanto ao sujeito” (Lacan, 1966, p. 230). Considerando-se que esta disjunção é
universalmente constitutiva da experiência e da cultura humanas, o inconsciente lacaniano é
pura negatividade que só chega a existir através de uma representação substitutiva
consciente. No entanto, esta expressão é arbitrária e a diferença entre significante e
significado continua a ser absolutamente irremediável.
Estas são algumas das operações que tornam possível descrever o inconsciente
como discurso do Outro, da cadeia de significantes que constitui o elo de associações
metonímicas na linguagem. Conseqüentemente, estar na linguagem é apresentar-se como
um Outro inerradicável, como a alteridade da própria significação que constantemente
escapa às intenções subjetivas. Assim, não é o sujeito que é alienado de si mesmo, caso no
qual um princípio de identidade ainda se sustentaria de maneira velada. Na verdade, o
sujeito é alienado no próprio significante que inexoravelmente o divide. Esta divisão é
analisada por Lacan a partir do recalque dos desejos edipianos e concebida como uma
proibição fundadora, ou fundamental, que sobrevive no desejo como Lei do significante, a
qual condiciona a individuação do sujeito. Este recalque primário também constitui o
desejo como falta, ou seja, como uma resposta à separação originária, que é menos a
separação do nascimento do que o resultado da proibição da união incestuosa. É por isto
que o desejo é tido como um querer-ser ou uma falta-a-ser (Lacan, 1979, p. 33),
perpetuamente frustrada por causa de sua sujeição à Lei do Significante. Este complexo
raciocínio leva a pensar que se o desejo se faz representar na linguagem, ele só o faz sob a
forma de uma presença oblíqua: sempre associado à sua proibição, ele assume a forma de
uma ambivalência necessária.
Elaborando a distinção freudiana entre o alvo e o objeto da pulsão (Freud, 1994
[1914]), Lacan entende o projeto implícito ao desejo como recuperação do passado através
de um futuro que necessariamente o interdita. O desejo seria então o pathos do ser cultural
ou do sujeito pós-edipiano: ele “é uma falta engendrada há tempos atrás que serve para
responder a falta criada pelo tempo que se segue” (Lacan, 1979, p.221). A proibição que o
constitui é precisamente o que interdita a sua satisfação final; em conseqüência disto o
desejo estaria sempre correndo contra um limite que, paradoxalmente, o sustenta enquanto
tal. O desejo então seria uma atividade incansável dos seres humanos que mantém sua
inquietação com relação a um limite necessário.
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Outro aspecto interessante é que Lacan aceita a distinção entre os desejos humano e
animal, dando a este último o nome de necessidade. Assim como para Alexandre Kojève
(1968) – grande comentador de Hegel cujos cursos ele freqüentou nos anos 30 - o desejo
em Lacan também se distingue através de suas manifestações no discurso, o que faz da
verbalização a sua precondição necessária. No entanto, diferentemente de Kojève, Lacan
ressalta que a cadeia metonímica de associações através das quais o desejo humano fala é o
lugar de sua opacidade intratável. Seguindo Hyppolite (1971), ele concorda que o desejo é
sempre desejo do outro, mas também lembra que este nunca pode ser satisfeito na medida
em que o Outro, o inconsciente, permanece, em ultima instância, opaco. Em função disso,
afirma Butler, o desejo “existe como uma discrepância entre a necessidade (impulso
biológico) e a demanda (que é sempre demanda de amor, de reconhecimento completo
através da recuperação da união pré-edipiana)” (Butler, 1987, p. 192). “Assim, ele não é
nem o apetite de satisfação nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da
subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua divisão” (Lacan, 1966, p.
691). O desejo, portanto, aparece como uma fenda, uma discrepância, um significante
ausente e, neste sentido, só aparece como aquilo que não pode verdadeiramente aparecer.
Isto porque o desejo nunca se materializa ou se concretiza na linguagem, mas é apenas
indicado através de seus interstícios, ou seja, através daquilo que a linguagem não pode
representar em termos absolutos.
Nota-se que o desejo neste tipo de leitura está sempre vinculado a um projeto de
recuperação impossível, onde o que deve ser recuperado é tanto o campo libidinal
reprimido, constitutivo do inconsciente, quanto o “objeto perdido”, a mãe pré-edipiana.
Um projeto como esse é impossível precisamente porque o sujeito pretende ser idêntico ao
significante, e mesmo uma identificação deste tipo é interditada pela própria linguagem que
o divide desde sempre. Na verdade, o sujeito é aquilo que substitui o objeto perdido e pode
ser compreendido como a incorporação desta perda. De acordo com Lacan ele é “a
introdução de uma perda na realidade (...) quando o sujeito toma o lugar da ausência,
introduz-se na palavra uma perda, e esta é a definição do sujeito” (Lacan, 1976, ps. 205-
206). E é por isso que o discurso de um tal sujeito só pode ser pronunciado
enigmaticamente através das suas ausências. Este discurso indica ao mesmo tempo a
“perda” que ele representa, e anuncia a superação dessa perda pelo desejo. Ele é
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necessariamente o discurso de um desejo deslocado, que estabelece analogias constantes
entre o objeto perdido e o objeto presente, construindo falsas certezas na base de
similaridades parciais.
Conseqüentemente o sujeito que fala é um sujeito “desvanecente”, que está sempre
desaparecendo no inconsciente que ele representa. Constituído a partir da representação
desta perda desejada, ele vacila freqüentemente entre sua própria particularidade e o Outro
perdido, o qual, com efeito, também é representado por ela. Nota-se portanto que Lacan
entende o desejo como um princípio de deslocamento lingüístico presente na função
metonímica de toda significação. Nas palavras do autor, “A relação entre o sujeito barrado
e o objeto (a) é a estrutura que sempre se encontra no fantasma que sustenta o desejo, na
medida em que o desejo é tão-somente aqui o que chamei de metonímia de toda
significação” (Lacan, 1976, p. 206).
O efeito da articulação do desejo é então o perpétuo deslocamento do significado.
Na medida em que a demanda de amor presente no desejo é demanda de prova ou evidência
de amor, o desejo está articulado não com o objeto que o satisfaria, mas com um objeto
originalmente perdido, proibido pela Lei do Pai e em consonância com a Lei do
significante. Sendo assim, poderíamos dizer que a afirmação lacaniana de que “o desejo do
homem é o desejo do Outro” é a sua versão para o Absoluto de Hegel, pois o desejo do
Outro é tanto a origem quanto o alvo final da demanda de amor. Este Absoluto, este “ser”
faltoso, é também chamado de gozo: a completude de um prazer sempre frustrado pela dor
da individuação edipianamente condicionada.
Na medida em que o desejo busca implicitamente a recuperação impossível do
gozo, através de um Outro que não é o seu objeto originário, o processo desejante
transforma-se numa série de desconhecimentos necessários que nunca são completamente
resolvidos. Como é o recalque que funda o desejo, a decepção parece ser sua única
contrapartida necessária. Com isso, a apreensão do desejo como desejo do Outro só é
possível através da escuta do que não é dito, do que é denegado, omitido ou deslocado.
Citando Lacan, “o sujeito encontra uma falta na própria intimação que o Outro lhe faz
através de seu discurso” (Lacan, 1979, p. 223). A cadeia de significações, associações e
substituições metonímicas que re-presentam o desejo do Outro é simultaneamente um
deslocamento deste desejo, o que faz com que o esforço pelo reconhecimento seja sempre
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desviado de seu curso. Admitindo que o sujeito hegeliano é autotransparente, Lacan confia
à psicanálise a introdução da noção de opacidade na doutrina hegeliana do desejo (Lacan,
1966, p. 813).
No entanto, as formulações hegelianas não lhe parecem completamente
equivocadas, pois, enquanto demanda, o desejo é também um projeto de conhecimento.
Ainda que não possa ser propriamente assimilado à demanda, existindo como o diferencial
entre ela e a necessidade, o desejo em sua versão lacaniana mantém algo da busca
transcendente pela presença que caracteriza os pensadores hegelianos. Segundo Lacan, “a
demanda nela própria vincula-se a alguma outra coisa para além das satisfações que ela
solicita. Ela é demanda da presença de uma ausência – que se manifesta na relação
primordial com a mãe” (Lacan, 1966, p. 634). Este caráter transcendente da demanda
manifesta o seu completo desprezo por demonstrações particulares de afeto ou, dito de
outro modo, faz com que ela apreenda toda e qualquer demonstração particular a partir da
prova incondicional de amor que ela deve representar. Na verdade, a demanda pode resultar
na completa renúncia às necessidades, pois as satisfações das mesmas aparecem como
demonstrações de atenção particularmente falsas, fortuitas, insignificantes e sem qualquer
utilidade para aquela demanda de amor incondicional. Neste contexto o desejo emerge
como uma espécie de mediador sacrificial, aquele pelo qual a realização da mediação é
impossível. Ele desempenha o papel de paradoxo nas relações entre necessidade e
demanda, e não pode nunca efetuar uma unidade harmônica entre necessidades particulares
e demandas universais, mas apenas elaborar a contradição, perseguindo mundanamente,
sem qualquer esperança, o impossível.
Se o desejo emerge como uma atividade necessariamente paradoxal, também
podemos encarar a sua versão lacaniana como uma transposição para a psicanálise da noção
de desejo em Hyppolite. Indicando como a necessidade continua a residir no exercício do
desejo, Lacan revelaria a ingenuidade fenomenológica da estrita distinção kojèviana entre
desejo e necessidade. Além disso, no entanto, a articulação do desejo no discurso
desvendaria o simbolismo essencialmente romântico que governa as teorias da linguagem e
da expressão em Hegel, Kojève e Hyppolite. Como mostramos anteriormente, estar na
linguagem, para a psicanálise lacaniana, significa estar infinitamente deslocado com relação
a uma significação original. E, posto que o desejo se constitui dentro deste campo
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lingüístico, ele está constantemente em busca daquilo que não quer realmente, como se
estivesse sempre querendo o que não pode finalmente obter. O desejo significa portanto o
domínio de uma contradição irreparável.
Entretanto, Lacan se mantém aprisionado ao discurso de Hegel na medida em que
para ele a demanda retém o ideal hegeliano e o desejo permanece portador de más notícias
ontológicas. Não há dúvida de que ele encontrou na dialética do desejo uma visão
preferível ao discurso fisiológico sobre o instinto que predominou em determinados
círculos psicanalíticos. Absolutamente cônscio das falsas promessas de progressão e
unidade oferecidas pelas explanações fenomenológicas de Hegel (1941 [1807]), Lacan no
entanto permanece convencido de que a dialética contém traços de valor universal, os quais
seriam indiretamente confirmados pelos achados do estruturalismo e da psicanálise. Ele
argumenta que a noção hegeliana de desejo possibilita uma contraposição à tradução
inglesa do trieb como instinto, na medida em que ela é portadora da ambigüidade
originalmente pretendida por Freud para a pulsão (Lacan, 1966, ps. 851-854). A demanda
de amor sob a qual trabalha o desejo, ou seja, a sombra inexorável sob a qual ele existe, é
ela própria irredutível a necessidade fisiológica. Deste ponto de vista, o desejo
especificamente humano de reconhecimento incondicional não poderia de modo algum ser
reduzido ao materialismo bruto da vida afetiva.
Lacan, portanto, vê em Hegel uma espécie de corretivo crucial para o reducionismo
materialista de uma teoria psicanalítica baseada na fisiologia. No entanto, porque o desejo é
o diferencial entre a demanda e a necessidade, ele existe, por assim dizer, a meio caminho
entre o silencio e a fala/discurso. Entre o silêncio intratável da necessidade e o logocêntrico
clamor da demanda, o desejo é o momento no qual os limites da linguagem são
incessantemente problematizados. A firme convicção lacaniana de que nenhuma forma
lógica ou lingüística pudesse reconciliar esta diferença, marca sua ruptura com o otimismo
ontológico de Hegel. Numa passagem de um de seus escritos mais famosos, “Subversão do
sujeito e dialética do desejo” ele afirma que, “longe de ceder a uma redução logicizante
quando se trata da questão do desejo, encontramos na sua irredutibilidade à demanda a
própria fonte do que sempre o impede de ser remetido à necessidade. Colocando de
maneira elíptica: é precisamente porque o desejo é articulado que ele não é articulável”
(Lacan, 1966, p. 804). Assim, Lacan defende Hegel quando se opõe a naturalização da
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teoria psicanalítica e o critica quando argumenta contra a postulação de um sujeito
autônomo.
De qualquer forma parece que o desejo em Lacan continua em busca do Absoluto.
Este, no seu entendimento, estaria fundado na constituição da crença numa satisfação
última, a qual é ao mesmo tempo memória do gozo infantil perdido e fantasia de sua
recuperação. Entretanto, como não é claro que este prazer primário e indiferenciado tenha
realmente existido, considerando que nosso único acesso a ele está fundado numa
linguagem baseada em sua denegação, o Absoluto deve ser preferivelmente uma fantasia de
perda do prazer proibido e não uma memória ou estágio efetivo do desenvolvimento
infantil. Assim, faz sentido perguntar se Lacan não teria redescoberto um sonho religioso
de plenitude numa fantasia de prazer perdido que ele mesmo construiu. Embora ele entenda
que refutou a possibilidade de busca dialética pela plenitude, a crença neste tipo de estado é
evidente na nostalgia com a qual sua teoria do simbólico caracteriza todos os desejos
humanos.
Certamente existem inúmeras razões para se suspeitar de uma concepção de desejo
como esta, e é preciso lembrar que o próprio Lacan parece tê-la relativizado em um
momento ulterior de sua obra, voltado para uma teorização mais rigorosa sobre o registro
do real, ao qual não poderemos fazer referencia no contexto deste trabalho
2
. Talvez o
problema mais importante neste caso, atenha-se ao seu ponto estrutural de base, que, como
teremos a oportunidade de ver, foi justamente o principal objeto das críticas formuladas por
Gilles Deleuze. Trata-se da lei proibitiva, da Lei do Pai que parece agir de modo universal,
ao ser tomada como fundamento por excelência da linguagem e da cultura. O que estaria
pressuposto ali é que uma experiência original de prazer foi proibida e recalcada, e que o
desejo emerge como falta, como um anseio ambivalente que incorpora aquela proibição
mesmo quando busca transgredi-la. Mas, poder-se-ia perguntar, será que o desejo é não
apenas necessariamente fundado pela proibição mas também estruturado nestes mesmos
termos? Além disso, seria a lei assim tão rígida? E, será que a satisfação é sempre tão
fantasmática?
A afirmação do desejo produtivo em Deleuze
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O postulado do recalque originário como constitutivo do sujeito e a conseqüente
formulação do desejo como falta, requerem que aceitemos este modelo jurídico da lei como
a relação político-cultural fundamental que informa a estrutura deste desejo. Nos trabalhos
de Deleuze (e também de Foucault
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), é precisamente esta presunção estruturalista da
primazia da lei jurídica e a formulação do desejo em termos das oposições binárias de falta
e plenitude que serão questionadas. Tanto Deleuze quanto Foucault aceitam em parte o
descentramento do sujeito hegeliano e os postulados da construção cultural do desejo
promovidos por Lacan, mas vêem no seu programa psicanalítico um exemplo da doença
que se pretende curar; isto porque eles argumentam que a reificação da lei proibitiva não é
senão uma modalidade ideológica de confirmação da sua hegemonia. De formas diversas
mas relacionadas, ambos recusam esta formulação do desejo em termos de negatividade,
argumentando que é a afirmação, e não a negação, o que caracteriza primariamente os
anseios humanos. Só o reconhecimento deste fato destituiria de modo absolutamente
definitivo o sujeito hegeliano. Na verdade, esta negatividade do desejo seria a doença
cultural sustentada tanto pela dialética quanto pela psicanálise lacaniana. Na
impossibilidade de discorrer mais longamente aqui sobre as teses de Foucault, gostaria de
discutir de forma um pouco mais detalhada, as principais críticas formuladas por Deleuze.
Em seus trabalhos, Deleuze tentou reconstruir a genealogia dos desejos que se
voltam sobre si, propondo uma concepção alternativa do desejo baseada na atividade
produtiva e generativa. Segundo ele, o discurso que conceitua o desejo como falta fracassa
na consideração da genealogia desta mesma falta, tratando sua negatividade como uma
verdade ontológica universal e necessária. O que a leitura deleuziana pretende mostrar, é
que o desejo tornou-se uma falta em virtude de uma série contingente de condições sócio-
históricas, as quais exigem e reforçam a sua autonegação. Em Nietzsche e a filosofia
(Deleuze, 1975), é a “moralidade escrava”, típica da ideologia cultural judaico-cristã, que é
considerada a responsável pela volta do desejo contra si mesmo. Mais tarde, no Anti Édipo
(Deleuze, 1976), esta ideologia é especificada em termos contemporâneos pelos efeitos
conjuntos da psicanálise (lacaniana) e das práticas de dominação próprias ao capitalismo
avançado.
A partir desta perspectiva, o fundamento ontológico da falta é revelado em termos
de reificação do conceito econômico de escassez, aparecendo como uma condição
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necessária da vida material inacessível às transformações sociais. Nota-se, portanto, que,
em Deleuze, a crítica do discurso sobre o desejo como negatividade expõe o seu caráter
ostensivamente privativo como efeito de uma privação material concreta, a qual implica
num tipo de ideologia reativa e contrária à vida. Já o desejo emancipado ou criador seria de
outra ordem; ele estaria para além da falta e da negatividade e deveria ser visto como uma
função de afirmação, geradora e produtora de vida. De acordo com Butler, poderíamos
dizer que a teoria deleuziana “procede por duas vias complementares: (1) a da crítica do
desejo como negatividade e (2) a da promoção de um ideal normativo para o desejo como
afirmação” (Butler, 1987, p.205). Esta última se baseia fundamentalmente na reconstrução
da vontade de potência nietzscheana, posta a serviço de uma teoria de emancipação afetiva.
Deleuze argumenta que a negatividade, a falta característica do desejo, é instituída
por meios ideológicos a fim de racionalizar uma situação social de hierarquia ou
dominação. Em conseqüência disto, ele procura delimitar como o recalque de um desejo
original, caracterizado pela plenitude e pelo excesso, culmina na sua forma derivativa
faltosa e privada. A negatividade do desejo é, então, considerada o sintoma de uma historia
de repressão esquecida, e a desconstrução desta negatividade promete a liberação daquele
desejo mais original e generoso (abundante e farto). Deleuze rejeita a relevância universal
da construção edipiana e, para se contrapor a ela, recorre ao pensamento de Nietzsche, onde
a lei proibitiva é especificada como moralidade escrava judaico-cristã, a qual resulta
necessariamente na volta do desejo sobre si. Segundo ele, esta mesma concepção reativa
das forças desejantes se expressaria na contemporaneidade através da lei psicanalítica do
recalque primário lacaniano e da suposição capitalista de uma escassez necessária.
Considerando-se que a noção deleuziana de moralidade escrava não apresenta nenhuma
necessidade histórica, ela pode ser subvertida pelas forças da vontade de potência e do
desejo afirmativo diante da vida, livres da coerção da lei proibitiva. Apesar da hegemonia
desta lei, Deleuze insiste em afirmar que ela não apenas pode, como deve ser quebrada,
apostando na positividade advinda de um movimento de transgressão criadora.
Baseando-se na Genealogia da moral nietzscheana, que já caracterizava a
moralidade escrava como ressentimento e inveja resultantes da vontade voltada contra si
mesma, a crítica deleuziana vê no sujeito hegeliano precisamente este poder que se torna
negativo através do enfraquecimento ou mutilação de seus poderes próprios. Este sujeito,
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assim como o Eu lacaniano, não são, portanto, instâncias autônomas e autoprodutoras, mas
construtos fabricados através de uma autonegação escravizada. Daí que o sujeito hegeliano,
ostensivamente autônomo, é escravizado por sua própria recusa da multiplicidade não-
dialética dos impulsos que sustentam a sua aparente negatividade. Como ocorre em Lacan,
o sujeito é mais uma vez entendido como uma defesa contra uma configuração primária do
desejo, e o “trabalho do negativo” que caracteriza o desejo hegeliano é compreendido como
um desejo privado de si que disfarça a genealogia de sua privação.
Para Deleuze e Nietzsche, o sujeito em Hegel se apresenta como uma falsa
aparência de autonomia; e enquanto manifestação da moralidade escrava, este sujeito seria
muito mais reativo do que autoprodutivo. Justamente por isso, Nietzsche teria encontrado
um ideal de autonomia mais satisfatório na vontade de potência, ou no que a sua
Genealogia descreve como aqueles valores aristocráticos da força que afirma a vida, numa
posição moral para além da inveja e do ressentimento. Tomando Hegel como exemplar
filosófico da reação ele afirma que “a revolta dos escravos em moral começa quando o
próprio ressentimento se torna criador e engendra valores: o ressentimento desses seres para
os quais a verdadeira reação, a da ação, está interditada e que só se ressarcem por meio de
uma vingança imaginária” (Nietzsche, 2000 [1887], p. 82). Por essa razão, as grandes
realizações, os verdadeiros feitos, são fontes de auto-afirmação obstruídas para o tipo
escravo (hegeliano) o qual, incapaz de ações autoprodutivas, está restrito às auto-
subversões reativas.
A moralidade nobre de Nietzsche consiste numa afirmação da diferença que resiste
à tendência dialética de assimilação numa identidade mais fechada. Isto se esclarece a partir
da teoria nietzscheana das forças tal como Deleuze a lê: “em Nietzsche, a relação essencial
de uma força com outra nunca é concebida como um elemento negativo na essência. Em
sua relação com uma outra, a força que se faz obedecer não nega a outra ou aquilo que ela
não é, ela afirma sua própria diferença e se regozija com esta diferença” (Deleuze, 1975, p.
7). Nesses termos diferenciais, a própria vontade é um jogo de forças múltiplo que
conseqüentemente não pode ser contido pela unidade dialética; estas forças representam
correntes de vida, interesses, desejos, prazeres e pensamentos que coexistem sem a
necessidade de uma lei repressiva ou unificadora. Por isso, a identidade não passaria de
uma designação incorreta, fruto de uma má compreensão da multiplicidade enquanto
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característica fundamental da subjetividade. Na medida em que esta não é definida por uma
lei única ou por um conceito unificador, ela na verdade mantém a oposição sem unidade,
diferentemente do sujeito hegeliano que requer que esta oposição seja assimilada em termos
identitários.
Este tipo de requisição é compreendido por Nietzsche e Deleuze como um sinal de
fraqueza e decadência; se o sujeito só existe através da assimilação das oposições externas,
ele não pode senão depender desta relação negativa para a constituição reativa de sua
identidade própria. Daí, que lhe falta o poder de auto-afirmação característico dos tipos
“fortes” e do além do homem, cujas relações com os outros transcendem a dependência
radical. A vontade nietzscheana, por outro lado, não afirma a si mesma fora de um contexto
de alteridade, ainda que difira do desejo hegeliano em sua aproximação fundamental da
mesma. Na medida em que a diferença não é mais entendida como um pré-requisito para a
identidade, a diversidade não mais se apresenta como aquilo que deve ser trabalhado,
suplantado ou conceituado. Mais propriamente, a diferença torna-se condição de alegria, de
um sentido acentuado de prazer, de aceleração e intensificação do jogo de forças, traços que
constituem o que poderíamos chamar de versão nietzscheana do gozo.
Embora a Fenomenologia do Espírito trate explicitamente deste mesmo tema
(Kojève, 1968, ps. 51-56), nela o gozo do senhor só é alcançado sem trabalho ou só se torna
possível através dos frutos do trabalho escravo. Ele tem como modelo a relação consumo /
dispêndio na qual o senhor acaba por se tornar insatisfeito com sua vida de satisfações. A
dependência do escravo arruína seu senso de auto-suficiência e efetividade, na medida em
que a experiência de sua própria negatividade está restrita ao consumo. Em Hegel, portanto,
a satisfação é claramente diferente do gozo; a primeira significa que a lei de identidade foi
reafirmada, o que proporciona um tipo de gratificação estritamente conceitual, enquanto o
segundo é uma questão decididamente mais sensual, mais imediata e, portanto, menos
filosófica.
Na visão de Butler, Deleuze discorda de pelo menos dois destes postulados centrais
hegelianos: “a formulação do gozo, em ultima instância, como um modo de consumo
insatisfatório, e a rejeição das relações sociais hierárquicas em favor de uma noção de
autonomia baseada na lei de identidade” (Butler, 1987, p. 120). Em ambos os casos, é a
noção de sujeito idêntico a si que determina os parâmetros de satisfação. Uma versão de
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identidade como esta não passaria de mais um sintoma da moralidade escrava, na qual a
diferença é apenas vivida de maneira passiva e não verdadeiramente desfrutada. A
postulação de uma auto-identidade como condição ontológica de satisfação, obstrui a
afirmação da diferença enquanto tal assim como os prazeres derivados do intercâmbio
hierárquico. Nestas condições, a subjetividade dialeticamente constituída é a de um
escravo, não no sentido hegeliano do termo, mas no sentido nietzscheano, ou seja, a de um
tipo doente de si mesmo ao qual falta a potência da nobreza, e que através da proeza de
uma transvaloração invejosa acaba por exaltar suas próprias limitações como evidência de
uma moral superior (Nietzsche, 2000 [1887], os. 163-165). Este escravo, que na verdade
racionaliza sua incapacidade como força moral é, precisamente, o sujeito hegeliano. Na
medida em que a emancipação baseia-se na autonomia e na auto-realização, o escravo
emancipado estará restrito às coerções da auto-identidade e não conhecerá nem o prazer
nem a criatividade, traços essenciais da vontade de potência e do desejo produtivo. Este
sujeito não pode senão temer ou apropriar-se de traços do mundo externo, na medida em
que seu projeto fundamental e seu anseio mais profundo são os de atingir a auto-identidade
ou a autoconsciência reflexiva. Por estas razões não lhe é possível estar no mundo da
alteridade sem medo, de forma alegre e criativa.
Ainda de acordo com Deleuze, o que Nietzsche nos propõe fundamentalmente são
novos significados para as atividades de afirmação e negação, os quais invertem e
ultrapassam as relações entre estes termos tais como se apresentam no pensamento de
Hegel. Com isso, a afirmação deixa de carregar o fardo da efetivação de uma unidade
ontológica entre o que afirma e o que é afirmado, na medida em que não há mais nenhum
ser fora da vontade de potência: “o ser e o nada são apenas a expressão abstrata da
afirmação e da negação como qualidades (qualia) da vontade de poder” (Deleuze, 1975, p.
155). Daí em diante, todas as expectativas filosóficas de que o mundo possa ser analisado
em termos de verdade e falsidade, ser e não-ser, aparência e realidade, são encaradas como
sintomas de um ódio difuso para com a vida, que racionaliza a si mesmo através da
imposição de falsas construções teóricas. Estas oposições conceituais teriam no fundo a
pretensão de deter a vida, controlá-la e enterrá-la, salvaguardando o pensador dialético na
sua posição caricatural de morto-vivo. O postulado da identidade, portanto, quer como
relação entre sujeitos, entre aspectos discrepantes do mundo, ou entre o ser no mundo e sua
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verdade, seria apenas uma estratégia de contenção, motivada pelo temor e pelo ódio do
escravo à vontade de potência enquanto princípio de vida. Segundo Deleuze, “Nietzsche
não acredita nem na auto-suficiência do real nem na do verdadeiro: pensa-as como as
manifestações de uma vontade, vontade de depreciar a vida, vontade de opor a vida à vida”
(Deleuze, 1975, p.153).
Este esboço da posição crítica nietzscheana a partir da categoria de vontade de
potência traz no seu bojo a necessidade de encararmos o desafio de uma formulação pós-
hegeliana para as subjetividades desejantes. Com o seu pensar dionisíaco, Nietzsche nos
oferece uma maneira de separar o desejo da negatividade e de considerar a genealogia da
posição hegeliana em termos de uma moralidade escrava. A vontade de potência
proporciona um modelo alternativo de desejo baseado na plenitude da vida, em sua
incessante fertilidade e não na negatividade da autoconsciência. A crítica de Nietzsche à
identidade também tem como conseqüência promover o descentramento do sujeito auto-
suficiente como agente implícito e objetivo explícito do desejo. A gênese desse sujeito
também é considerada por Deleuze como uma defesa contra um desejo mais primário e
menos domesticado filosoficamente. Trata-se neste caso de um desejo de afirmação da vida
que se constitui num objetivo de emancipação diante das forças coercitivas do capitalismo e
da ideologia edipiana, típicas da moralidade reativa do escravo.
Este desejo reprimido, modelado na vontade de potencia nietzscheana, é ainda
atribuído ao conatus ou potência ativa de Espinosa, o qual, colocado no contexto político e
cultural moderno, torna-se a fonte afetiva das transformações revolucionárias (Deleuze,
1968, os. 197-213). Na ótica deleuziana, a vontade de potência é também como esse desejo
primário de persistir no próprio ser, tal como definido por Espinosa: ambos os desejos são
potencializados e acentuados por um ser que se deixa afetar pelos fenômenos externos.
Neste sentido, o desejo é o que é fortalecido por esta capacidade de responder ao que é
inevitavelmente externo. Na verdade, Deleuze entende a vontade de potência como uma
sensibilidade desenvolvida ou uma paixão, o que faz com que, no Anti-Édipo, ele defina o
desejo e o corpo em termos de forças de “atração e reprodução de intensidades” (Deleuze,
1976, p. 339). Spinoza, portanto, também oferece a Deleuze uma forma de compreender
nossa relação com o mundo a partir da intensificação de um desejo que resiste à demanda
dialética de apropriação do mesmo através de uma lei identitária.
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Embora Hegel critique Espinosa por não compreender a negatividade que move a
autoconsciência, Deleuze parece aplaudi-lo exatamente por esta exclusão do negativo. O
desejo é entendido então como uma resposta produtiva à vida, cuja força e intensidade se
multiplicam no curso de uma troca com a alteridade. A “vontade” em Deleuze não é
“voluntariosa” mas responsiva e maleável, assumindo formas de organização novas e mais
complexas através da troca de forças constitutiva do desejo. Na medida em que o campo de
forças é múltiplo em suas possibilidades, o desejo é menos uma luta para monopolizar o
poder do que uma troca que intensifica e prolifera energia num estado de excesso. Sob o
agenciamento das condições de escassez, que produzem o desejo como uma modalidade de
privação, reside uma abundância plena de desejo de afirmação da vida. Para Deleuze, a
tarefa política e pessoal de uma erótica pós-hegeliana é restabelecer aquela persistência
espinozista e remodela-la nos termos da vontade de potência. Deste ponto de vista o sujeito
hegeliano pode ser entendido como um produto da moralidade escrava, uma conseqüência
do mal-estar cultural, assim como o resultado do agenciamento de um desejo que nega a
vida.
Considerações finais
Como espero poder ter mostrado, a teoria deleuziana prescreve um movimento que
vai de um desejo negativo a um desejo produtivo, o qual requer que consideremos certas
possibilidades de emancipação desejante. Neste sentido, é quase como se a teoria lacaniana
tivesse sido politizada pela argumentação de que o desejo produtivo e o gozo são acessíveis
à experiência humana, e de que as leis coercitivas que os governam podem e devem ser
transgredidas. A insistência de Nietzsche na multiplicidade de afetos não-dialéticos, desafia
a possibilidade de um sujeito idêntico a si mesmo, sugerindo que a vontade de potência não
possa ser reduzida à estrutura internamente complicada do desejo hegeliano. Embora
Nietzsche refira-se ocasionalmente a um único impulso dominante em torno do qual vários
afetos e forças se organizam, Deleuze prefere claramente uma leitura da vontade de
potência que resiste a uma tal unificação dos afetos. Para ele há uma diferença significativa
entre um desejo internamente múltiplo, no qual a interioridade dos vários desejos sugere
uma superfície unificadora de contenção, e um conjunto fundamentalmente múltiplo de
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desejos que não podem senão ser falsificados por algum esforço para descreve-los como
unidade.
Daí a importância da crítica de Deleuze a reificação lacaniana da lei jurídica como
fundadora de toda a cultura, oferecendo com Nietzsche, uma estratégia de subversão e
transgressão desta mesma lei. Neste sentido, seu questionamento sobre a estrutura do desejo
está assentado em uma perspectiva construída em termos culturais e políticos, o que faz
com que qualquer análise do desejo esteja sempre implicada na situação cultural que ela
pretende explicar. Em Lacan a promessa de uma libertação do desejo das coerções
culturalmente impostas permanece impagável para sempre. Já para Deleuze podemos
apostar que a erradicação da negatividade do desejo produtivo, ou pelo menos a sua
colocação a serviço de uma produtividade afirmativa, culmine na viabilização de um Eros
internamente diferenciado e diferencial, no qual as diferenças são entendidas como
diferenciais positivos de força e não como momentos do desejo externamente relacionados
entre si. Neste sentido, a teoria das forças substitui a doutrina hegeliana das relações
internas como garantia de um princípio não niilista de afirmação da vida. Se em Lacan,
como vimos, o gozo permanece como a coisa em si inacessível e responsável pelos
modelos estruturais de subjetividade, desejo e cultura, em Deleuze, a erótica da
multiplicidade afetiva revela-se como possibilidade vital de resistência e subversão desta
moralidade escrava que predomina na contemporaneidade desde os tempos modernos. Se
trata-se aqui de um movimento de criação ou de transgressão é o que precisaríamos discutir
ainda um pouco mais. Para além disso, talvez seja necessário questionar melhor de que tipo
de transgressão estamos falando. Se de uma transgressão perversa, meramente negativa e
fundada na normatividade da lei, ou de uma transgressão positiva, produtora de diferenças e
criadora de novas possibilidades estéticas e éticas de existência. Esta sim exigirá de todos
nós um verdadeiro trabalho de transvaloração e de crítica da ordem existente para que possa
se instalar com toda a sua potência de produção do novo.
Referências bibliográficas
19
BUTLER, J. Subjects of desire, N. York, Columbia University Press, 1987.
DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, 1968.
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DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O anti-édipo, RJ, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. “Pulsiones y destinos de pulsión” In: _______. Obras completas B. Aires,
Amorrortu Editores, 1994. v. 14.
HEGEL, W. F. La phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier, 1941.
HYPPOLITE, J. Figures de la pensée philosophique, Paris, PUF, 1971.
KOJÈVE, A. Introduction à la lecture de Hegel, Paris, Gallimard, 1968.
LACAN, J. Écrits, Paris, Seuil, 1966.
__________ “Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito
qualquer” In: MACKSEY, R. e DONATO, E. (orgs.) A controvérsia estruturalista, SP,
Editora Cultrix, 1976.
__________ O Seminário – Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
RJ , Zahar Editores, 1979.
NIETZSCHE, F. La généalogie de la morale, Paris, Librairie Générale Française, 2000.
NOTAS
1
Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ, Professor Assistente do Programa de Pós-
graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.
2
Para uma síntese da teoria lacaniana sobre o real, remetemos o leitor aos seguintes artigos de Jacques-Alain
Miller: “Les six paradigmes de la jouissance » in La cause freudienne n° 43, Paris, Seuil, 1999 ; « L’ex-
istence » in La cause freudienne n° 50, Paris, Seuil, 2001 ; « Le dernier enseignement de Lacan » in La cause
freudienne nº 51, Paris, Seuil, 2001.
3
Como aqui vamos nos ater fundamentalmente ao pensamento de Deleuze, remetemos o leitor à pelo menos
uma obra de referência para estas críticas: Foucault, M. História da sexualidade I, RJ, Graal, 1980.
ABSTRACT
Desire’s law and productive desire: transgression of the order or affirmation of difference?
The article intends to confront desire’s conceptions in the theories of Jacques Lacan and Gilles
Deleuze, respectively, presenting some differences between a Hegelian model, ruled by law, lack
and negativity, and another one, Nietzschean, based on affirmation and production. In such a
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manner, it becomes possible to think about two forms of subjectivity, also diverse, one centered in
the edipic vision, and another, which comes from the critic of this matrix model. Concerning that,
we still intend to oppose to the idea of a negative transgression, founded in the denial of law and
order, a conception of a positive or creative transgression, based on the affirmation of difference.
Keywords: Desire; law; transgression; Lacan; Deleuze.