Content uploaded by Jordão Nunes
Author content
All content in this area was uploaded by Jordão Nunes on Apr 11, 2016
Content may be subject to copyright.
Available via license: CC BY-NC 4.0
Content may be subject to copyright.
57
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
DIGITAÇÃO NA ENTRADA DE DADOS:
TRANSFORMAÇÕES NA IDENTIDADE OCUPACIONAL
1
Jordão Horta Nunes
Juliana Abrão da Silva Castilho
Universidade Federal de Goiás
RESUMO:O artigo tem como objeto a ocupação de digitador na entrada de dados, que constituía, nos
anos 70-80, a base do sistema ocupacional na organização do trabalho da computação e da informática.
Com base numa pesquisa realizada na cidade de Goiânia, analisa-se as transformações na identidade
ocupacional de digitadores em serviços de entrada de dados com o desenvolvimento tecnológico dos
sistemas de informação e comunicação. Procura-se reconstruir as condições de imputação e de reconhe-
cimento de um vocabulário dos motivos que é internalizado pelos digitadores e remete a situações
sociais específicas, relacionadas à organização do trabalho informático no Brasil e a suas transforma-
ções, incluindo o deslocamento dos digitadores para outros setores de trabalho ou ocupações, como
processamento de textos.
PALAVRAS-CHAVE:. Trabalho informático. Ocupação. Profissão.
TYPING AND DATA ENTRY KEYERS: CHANGES IN OCCUPATIONAL IDENTITY
ABSTRACT:The article focuses the occupation of data entry keyers, the base of the occupational system
that organized computer work in seventies and eighties. Based in a qualitative research realized in the
city of Goiania, deals with changes in the occupational identity in data entry keyers due to the technical
development of information and communication systems. The inquiry analyses the conditions of imputation
and acknowledgement of a vocabulary of motives that is internalized by data entry workers. This vocabulary
refers to specific social situations, concerned to changes in computer work organization that include the
shifting of data entry keyers to other work sectors ou occupations, like word processor typing.
KEY-WORDS: Occupation. Profession. Computer work.
A ocupação de digitador foi considerada,
na fase áurea dos centros de processamento de
dados (CPDs), como o ponto de partida numa pro-
missora carreira no emergente mercado de traba-
lho da computação e da informática. De fato, a
digitação compreendia a base de um sistema
ocupacional organizado hierarquicamente, que in-
corporava também, numa classificação ascenden-
te, as funções de operador, programador e analista
de sistemas. O emprego maciço de digitadores ocor-
reu numa segunda fase da evolução tecnológica
dos computadores, que sucedeu uma primeira eta-
pa de produção artesanal e experimental, ainda
confinada nos centros e laboratórios de pesquisa.
Caracterizada pelo uso de grandes sistemas de com-
putadores (mainframes) instalados em CPDs, essa
fase marca a própria estruturação do trabalho
informático que, no Brasil, ocorreu entre os anos
70 e 80. Com a gradativa substituição dos
mainframes por microcomputadores e a correspon-
dente flexibilização do sistema ocupacional ante-
rior, aproximando as fases da produção (digitação
e operação) e do desenvolvimento (programação e
análise), algumas dessas ocupações transformam-
se drasticamente e outras, como é o caso da
digitação na entrada de dados, tendem a declinar
ou mesmo a desaparecer. Contudo, ainda que o
desaparecimento de trabalhadores ligados à entrada
de dados seja evidente, o mesmo parece não ocor-
rer com a ocupação de digitador. Afinal, é comum
a referência à digitação de trabalhos entre os di-
versos serviços oferecidos por empresas de
reprografia ou mesmo por gráficas de pequeno por-
te.
Trataremos aqui das transformações na
ocupação de digitador e das conseqüências dessa
mudança na construção de uma identidade
ocupacional. Segundo a Classificação Brasileira de
Ocupações (CBO) o digitador trabalha na entrada
de um sistema de processamento de dados, ope-
rando mini ou microcomputadores digitais; sua
função é gravar informações e “interpretar as men-
58
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
sagens fornecidas pela máquina, para efetuar a
detecção dos registros incorretos e adotar as medi-
das adequadas ao sistema” (Categoria de Digitador
– Código 3-42.40 – CBO). A pesquisa valoriza uma
proposição teórica que é familiar à psicologia soci-
al e à escola sociológica do Interacionismo Simbó-
lico: qualquer discussão de identidade tem como
ponto central a linguagem. Quando expressamos
vocabulários de motivos, ou simplesmente nomea-
mos ou classificamos despertamos também expec-
tativas, realizamos antecipações e revelamos uma
perspectiva de avaliação. Cada vocabulário de
motivos não representa simplesmente uma descri-
ção de uma situação social, mas consiste numa
forma de agir e envolve uma negociação de identi-
dades. Em outras palavras, efetiva-se uma defini-
ção “lingüística” de situações e interações envol-
vendo os digitadores e outros profissionais da en-
trada de dados na organização do trabalho
informático.
O recurso à teoria sociológica dos motivos
(MILLS, 1970; SCOTT e LYMAN, 1989) indica uma
abordagem interacionista à questão da identidade
(STRAUSS, 1997; BECKER, 1963) que valoriza o
processo de construção identitária e não uma vi-
são essencialista, que concebe a identidade como
unidade psíquica coerente e estável. Por outro lado,
situamos a noção de “identidade ocupacional” no
contexto de uma distinção entre “profissão” e “ocu-
pação” que é tão caro à sociologia do trabalho.
Vários autores compartilham a idéia de que uma
profissão requer a constituição de um tipo de con-
trole sobre o reconhecimento de ocupações, que
são atividades ou habilidades funcionais sistema-
ticamente relacionadas. Andrew Abbott, por exem-
plo, enfatiza um sistema de conhecimento com cer-
to grau de abstração que gera práticas técnicas.
Este tipo de conhecimento consiste o instrumento
pelo qual certos grupos ocupacionais se impõem
num contexto histórico e social, garantindo exclu-
sividade e validade num sistema concorrencial.
Ainda que uma categoria ocupacional possam de-
senvolver um código de ética, obter reconhecimen-
to legal ou até constituir representação sindical,
“somente um sistema de conhecimento governado
por abstrações pode redefinir seus problemas e ta-
refas, defendê-los de intrusos e dimensionar novos
problemas” (ABBOTT, 1988, p. 9).
Embora os digitadores não tenham logra-
do a constituição de um tal sistema de conheci-
mento em nível abstrato, como ocorreu em outros
grupos ocupacionais que atingiram o nível de pro-
fissão (a exemplo dos analistas de sistemas), eles
vivenciaram um processo de definição e negocia-
ção das atividades ocupacionais, assim como do
conhecimento técnico a elas associado, tanto em
nível interno da categoria quanto em relação com
outros profissionais da entrada de dados. Este pro-
cesso de construção da identidade ocupacional,
que compreende a inclusão e a exclusão de cate-
gorias, procedimentos e regras sofreu profundas
transformações nos últimos vinte anos, a despeito
de sua expressão lingüística mais geral ter perma-
necido: digitadores.
METODOLOGIA
As considerações a seguir têm como base
uma pesquisa realizada na cidade de Goiânia du-
rante um ano, a partir de agosto de 2001, com a
participação de Juliana Abrão da Silva Castilho,
na época bolsista do PIBIC. A investigação envol-
veu o artifício metodológico da triangulação, pro-
cesso de validação de dados obtidos com fontes e
métodos diferentes (DENZIN, 1978; BRANNEN,
1992). A memória da experiência profissional
2
,
complementada por algumas obras específicas
como fontes secundárias e resultados de uma base
de dados administrativa do MTE formaram a base
que orientou a obtenção de dados primários quali-
tativos, a partir de entrevistas semi-estruturadas.
O critério para a aceitação de novos elementos
empíricos surgidos unicamente das entrevistas re-
alizadas à base constituída por fontes secundári-
as, memória da experiência do pesquisador e ba-
ses de dados sobre o mercado de trabalho (RAIS e
Caged) foi a consistência na informação em pelo
menos duas entrevistas.
3
Embora a triangulação envolva técnicas de
análise de dados quantitativos e qualitativos, a base
empírica da pesquisa é eminentemente qualitativa
e tem como fonte privilegiada o discurso dos
digitadores e profissionais de entrada de dados a
respeito de sua experiência profissional. Foram en-
trevistados 14 profissionais; doze trabalharam na
digitação de entrada de dados, sendo que um de-
les ainda trabalha nessa ocupação. Os dois restan-
tes são jovens profissionais da categoria de
“digitador” em processadores de textos para com-
putadores pessoais
4
. O critério para a escolha dos
informantes foi fundamentalmente a experiência
anterior do pesquisador como digitador. O ponto
de partida foi uma entrevista com um ex-funcioná-
rio da Codeg
5
, a primeira empresa estatal de
processamento de dados do estado de Goiás. O
profissional iniciou a carreira como digitador e hoje
é analista de sistemas, tendo vivenciado, portan-
to, toda a hierarquia funcional do trabalho
informático na época. A indicação de alguns cole-
gas para entrevistas iniciou um processo do tipo
“bola-de-neve” (snowball), conduzindo a uma su-
59
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
cessiva seleção de novos informantes, sob o crité-
rio da relevância em relação à fundamentação teó-
rica e com base nas declarações dos entrevistados.
Os textos das entrevistas foram codificados com
base em categorias interpretativas que conferiram
unidade ao corpus formado pelas transcrições. O
suporte semântico de tais categorias é a memória
da experiência profissional do digitador e os da-
dos secundários sobre a organização do trabalho
informático, no aspecto geral, e sobre digitadores
da entrada de dados em países subdesenvolvidos,
numa dimensão específica. O processo de criação
de categorias de codificação é de caráter recursivo;
o mapeamento das categorias confere unidade se-
mântica ao corpus, mas do próprio corpus emer-
gem novas categorias, aprimorando os códigos bá-
sicos que são derivados de teorias sobre a organi-
zação do trabalho informático e de reconstruções
da experiência vivida.
Os nomes dos entrevistados foram associa-
dos a pseudônimos, para preservar a identidade
dos participantes. O mesmo ocorre com pessoas
eventualmente citadas nos depoimentos, a não ser
personalidades publicamente reconhecidas. Os
nomes de empresas ou instituições eventualmente
mencionados são mantidos, com exceção da em-
presa em que o digitador estivesse empregado na
ocasião da entrevista.
A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO INFORMÁTICO
NA FASE ÁUREA DOS CPDS
Sintetizamos a seguir algumas
constatações a respeito das características gerais
da organização do trabalho nos antigos CPDs e,
especificamente, do trabalho de digitador na en-
trada de dados (SOARES, 1989; LAZZAROTTO,
1992; RAPKIEWICZ e SEGRE, 1999, 2001a, 2001b;
SALLES, 1995; MERLO, 1999). Há concordância
em que uma forma de taylorismo estrutura a orga-
nização de trabalho nos CPDs e pode ser evidenci-
ada nos seguintes aspectos:
– nítida divisão entre planejamento e execução
do trabalho;
– fragmentação e racionalização do trabalho, por
um processo de desqualificação para os execu-
tores (programadores, operadores, prepa-
radores, digitadores e fitotecários) e hiper-
qualificação para os poucos que podem plane-
jar (analistas);
– controle do trabalho por monitoração eletrôni-
ca. A valorização desse tipo de controle nos
CPDs ilustra que “o emprego de novas
tecnologias não é utilizado no sentido de ali-
viar a carga de trabalho ou de permitir maior
autonomia” ou criatividade em sua execução,
mas de “impor maior exigência de ritmos e ca-
dências” (MERLO et al, 2003: 129).
– interação mínima entre a organização e o tra-
balhador em termos de qualificação,
minimizando o treinamento e gerando dificul-
dades para a ascensão profissional;
– instalação dos CPDs em ambientes isolados,
com o objetivo de intensificar o trabalho e dis-
ciplinar a mão-de-obra;
– insatisfação dos digitadores perante a mono-
tonia e a falta de perspectivas do trabalho;
– ocorrência de LER (lesões por esforço
repetitivo) entre os digitadores, em decorrên-
cia de instalações inadequadas e jornadas lon-
gas e ininterruptas, por vezes em decorrência
de superposição de dois turnos de trabalho em
empresas diferentes.
Ainda que a caracterização anterior seja
fidedigna para os grandes centros do Sul e do Su-
deste, o quadro anterior parece incorporar outros
fatores, em outras regiões e cidades com padrões
sociais e econômicos distintos, como indicam os
resultados da pesquisa que realizamos em Goiânia.
OS DIGITADORES NA ESTRUTURAÇÃO DO
TRABALHO INFORMÁTICO EM GOIÂNIA
Planejada e construída para ser a nova ca-
pital de Goiás no início dos anos 30, Goiânia era,
em meados dos anos 70, uma cidade com uma
população economicamente ativa de 47295 pesso-
as, segundo o Censo Econômico de Goiás de 1975.
A economia da cidade, concentrada, nos anos 50
e 60, preponderantemente no setor primário (67%
e 64%, respectivamente), tem seu centro desloca-
do para o terciário (68,6%), com declínio acentua-
do no primário (8,7%) e relativo crescimento no
secundário (de 12,95% em 1950 para 22,67%) em
1975 (MIRANDA, 1984). O processo de urbaniza-
ção acelerada por que passou Goiânia não teve,
portanto, a exemplo dos centros do Sul e do Su-
deste, um desenvolvimento industrial
concomitante. Embora a esperança de seguir car-
reira nessa área fosse grande nos digitadores que
ingressavam, tanto em Goiás como nos centros do
Sul e Sudeste, nestes a situação era mais difícil,
pois os centros de processamento de dados já eram
bastante comuns. Bancos de dados setoriais já es-
tavam constituídos e não era mais viável ou dese-
jável implantar uma central única que gerenciasse
dados de diversas áreas, como era o caso em
Goiânia. Daí a excepcionalidade da condição dos
trabalhadores de informática no CPD da Codeg,
demandando uma responsabilidade muito grande
de seus profissionais, que constituíam um tipo de
elite técnica. Conseqüentemente, o salário era bas-
60
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
tante alto nos níveis médio e alto da carreira e
Niara ressalta bem essa distinção: “Nós éramos a
elite dentro do estado de Goiás, técnico em
informática era, como se fosse, assim, um doutora-
do. Quando você falava assim: ‘eu trabalho na
Codeg, eu sou programador’, era super
respeitado”.O salário de um analista era suficien-
te, segundo Niara, “dava para comprar um carro
zero por mês”. Ainda assim, os salários iniciais dos
digitadores no CPD da Codeg eram relativamente
baixos. Niara ganhava Cr$ 600 em 1975, o equiva-
lente a 1,1 salário mínimo. No final do mesmo ano,
quando já ocupava a função de supervisora de
digitação, passou a receber 2,3 salários mínimos.
Mesmo considerando que haja, eventualmente, re-
cebido por horas extras de trabalho ou percentuais
pela alta produção, seu salário não teria ultrapas-
sado, na ocupação de digitadora, a média de 2 a 3
salários mínimos que se recebia por essa ocupa-
ção. Portanto, a ênfase nas vantagens da profissão
presente em vários depoimentos decorre muito mais
da apologia em torno de uma profissão técnica “do
futuro”, socialmente construída e amplificada em
razão das peculiaridades do mercado de trabalho
na capital emergente, do que de reais benefícios
com o exercício da profissão.
O CPD da Codeg apresentava o tipo de or-
ganização de trabalho taylorista, com fragmenta-
ção e hierarquização de ocupações, rígido contro-
le e monitoração constante das atividades. Havia
uma possibilidade de interação entre os profissio-
nais hierarquizados, nos intervalos que, na Codeg,
eram de 10 minutos a cada hora trabalhada, com
um intervalo de 20 minutos para lanche no meio
de jornada de 6 horas por turno. Vale destacar que
essa prática de realizar intervalos de 10 minutos
por hora trabalhada não era usual nos CPDs. O
sistema na Codeg antecipava a Portaria 3.751/90,
que estipulava “parâmetros que permitem a adap-
tação das condições de trabalho às características
psicofisiológicas dos trabalhadores”. Um desses
parâmetros (que veio a ser reconhecido entre os
digitadores como “lei cinqüenta dez”) prescreve que
“nas atividades de entrada de dados deve haver,
no mínimo, uma pausa de 10 minutos para cada
50 minutos trabalhados, não deduzidos da jorna-
da normal de trabalho”. Contudo, antes dessa nor-
ma ser aprovada, após anos de reivindicação sin-
dical em todo o país, a prática dos 15 minutos de
intervalo por turno era quase um padrão.
O trabalho na digitação de entrada de
dados consistia um atrativo, sem dúvida,
principalmente para jovens que ingressavam na vida
profissional. Contudo, os turnos de meio período
atraíam preponderantemente pessoas que
desejavam, ou necessitavam, exercer outras
atividades no tempo diário restante. A ausência
de uma qualificação em termos de técnica ou
escolaridade para o ingresso na profissão constituía
outro estimulo. O depoimento de Teka, que foi
digitadora na Celg por muitos anos, é exemplar
para mostrar os motivos que conduziam ao ingresso
nessa profissão:
No meu caso foi por necessidade de
tempo, eu fiquei viúva muito nova e
tinha duas filhas pequenas e tra-
balhava oito horas e tinha dificuldade
de pessoas pra ajudar, de ajudante,
então foi preciso, de uma vez por
outra, eu precisei trabalhar meio pe-
ríodo pra cuidar de minhas filhas.
Tinha muitos casos de gente igual eu
e tinha muita gente que trabalhava
pra ter um outro serviço ou estudar,
fazer uma faculdade, eu sei vários
casos de pessoas que trabalhavam em
um período e em outro período, fazia
coisas à parte. Eu tinha que trabalhar
meio período e nessa época, meio
período, ou você era digitador ou você
era telefonista. Então eu optei por ser
digitadora.
A declaração de Teka ilustra a segregação
ocupacional, mas também a desigualdade nas
oportunidades de ascensão profissional
relacionadas ao gênero, temática que têm recebido
a atenção de especialistas em ocupações na
sociologia do trabalho (HULTIN, 2003;
LARANJEIRA, 1990; SEGNINI, 1998, 1996). Embora
o motivo mencionado por Teka seja mais freqüente
no gênero feminino, havia muitos homens que
digitavam em turnos noturnos para complementar
a renda ou que trabalhavam de dia para custear
um curso técnico ou faculdade à noite. Entretanto,
a prática mais comum entre os digitadores era
superpor dois e até três turnos de trabalho. Poucos
experimentaram uma ascensão profissional; no caso
dos que trabalhavam em birôs, essa mobilidade era
praticamente impossível. Em que consistia o
trabalho do digitador? Reproduzir valores
numéricos ou alfanuméricos (que continham
caracteres alfabéticos, além de numéricos) de
documentos como contas de água, de luz, cheques
a serem compensados, multas de trânsito, faturas
e documentos administrativos diversos. Havia dias
críticos em que se precisava fechar a arrecadação
de contas de luz, por exemplo. Nesses dias os
digitadores faziam horas extras, chegando até a
dobrar seus turnos, para finalizar a quantidade de
lotes de documentos necessária para o
61
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
cumprimento da tarefa.
Os CPDs eram ambientes fechados, sempre
mantidos em baixa temperatura, para não danifi-
car os equipamentos. A atenção requerida e a fis-
calização feita pelo supervisor tornavam pratica-
mente inviável a comunicação durante o horário
de trabalho. A incomunicabilidade, tanto em nível
da operação interna, como no contato com outros
setores da empresa, traço da fragmentação do tra-
balho que caracterizava a organização de trabalho
do tipo taylorista, se manifestava desde o arranjo
físico da sala até a programação da rotina e das
atividades. A disciplina, o controle e a racionali-
zação do processo do trabalho em todos os seus
aspectos constituíam a essência dos CPDs. Contu-
do, a percepção dessas características pelos
digitadores varia e está relacionada com a proba-
bilidade de ascensão ocupacional.
O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO:
DO OLHAR PANÓPTICO À
MONITORAÇÃO ELETRÔNICA
Perguntamos a todos os digitadores de en-
trada de dados entrevistados como seria “um bom
digitador”, ou seja, quais seriam as características
de um bom profissional nessa área. Todas as res-
postas incluíram os critério de “velocidade” e “cor-
reção”, ainda que, eventualmente, houvesse men-
ção a outros fatores, como a capacidade de se adap-
tar às regras ou à disciplina exigida no trabalho:
O bom digitador era aquele que
produzia e sem erro, na época exigia
que a gente tinha que digitar e checar
o serviço, não era checado, e hoje
checa [automaticamente], né? Você
tivesse checado os erros que passa são
mínimos, né? Então era aquele que
não deixava passar erro. (Carô)
Era aquele que tinha rapidez, e que
errava o menos possível, era um bom
digitador. (Esther)
Essas concepções de um adequado exercí-
cio da profissão parecem se relacionar com o do-
mínio da técnica. Contudo, não há propriamente
uma técnica de digitação para entrada de dados.
Os textos alfanuméricos eram muito menos freqüen-
tes do que as simples seqüências de números. As-
sim, o trabalho do digitador compreendia apenas
um reduzido domínio da técnica datilográfica. Além
disso, as teclas oferecem pouquíssima resistência
ao toque, em comparação com os teclados mecâni-
cos, o que permite que um profissional de nível
médio chegue a produzir até 18 mil toques/hora;
os resultados são ainda melhores para digitadores
mais experientes e habilidosos. O profissional nes-
sa área está envolvido pela contagem escrupulosa
de sua produção de toques/hora desde o momento
em que faz um teste para admissão até as circuns-
tâncias em que é promovido ou despedido por evo-
lução ou declínio em sua performance. A situação
em que trabalha, necessariamente vinculado a um
terminal de vídeo, sem possibilidade de interagir
com os colegas e, ao mesmo tempo, dependente de
uma performance operativa para assegurar sua po-
sição no sistema, cuja mensuração é feita pela pró-
pria máquina, o faz desenvolver uma certa forma
de falar. Trata-se de um vocabulário típico associ-
ado a essa situação de trabalho peculiar, sobre a
qual há um consenso, entre os que a experimen-
tam, a respeito de sua percepção pelos agentes e
da norma que a rege. Essa forma típica de falar
constitui, segundo Mills (1970) e Lyman & Scott
(1989), um “vocabulário dos motivos”.
Mills sugere uma forma para analisar soci-
ologicamente os vocabulários de motivos: a variá-
vel é o vocabulário de motivos aceito, os extremos
do discurso, em cada grupo dominante para a for-
mação da opinião de um indivíduo. “A determina-
ção de tais grupos, seu caráter e localização iriam
possibilitar a delimitação e o controle metodológico
de atribuições de motivos” (1970: 477).. Em nosso
caso, o vocabulário de motivos expressa a identi-
dade ocupacional do digitador, que é reconhecida
em função de sua rapidez e correção ou, na fala
dos próprios funcionários ligados à entrada de da-
dos, dos “toques/hora”. Já nos classificados de
empregos procurando digitadores o requisito de
identificação do funcionário aparece: “Vaga para
digitador. Exige-se um mínimo de 12 mil toques/
hora”. O “toques/hora” implica qualificação indi-
vidual, controle administrativo, reconhecimento
num grupo ocupacional e distinção num sistema
de processamento de dados. O depoimento de Carô,
que inclusive chegou a ser supervisora, além de
digitadora, evidencia que o controle da produção
estava relacionado com a avaliação e refletia no
prestígio e até na remuneração do funcionário,
embora este não concordasse com a mensuração:
“Além da Saneago as outras todas tinham um pro-
grama de produção que saía de toques, nível de
toques. Você fazia tantos toques e ganhava uma
porcentagem que eu não lembro como era feito o
pagamento, a gente tinha o salário mais a quanti-
dade de produção”.
O controle não incidia apenas sobre o nú-
mero de toques/hora e a quantidade de erros, mas
também sua o tempo de permanência na máquina
e as flutuações da velocidade e da precisão no de-
correr do período. Por esse tipo de controle e o
caráter de isolamento dos CPDs, Soares chega a
62
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
qualificar os CPDs nas décadas de 70 e 80 como
instituições totais, no sentido conferido por
Goffman de Asylums (1961: 4-5). O controle prin-
cipiava na distribuição especial dos pools de
digitação nos CPDs, que geralmente adotavam a
forma de uma sala de aula, com o supervisor (em
analogia com o professor regente) ocupando uma
mesa à frente da sala e os digitadores alinhados,
como estudantes em carteiras, de frente para o
supervisor.. O supervisor, com sua visão panóptica,
tinha controle do trabalho em toda a sala. Contu-
do, seu controle era mais no sentido de restringir a
interação, pois o controle da produção era feito
pelo software do sistema (monitoração eletrônica)
que gerava relatórios no final de cada turno, que
eram recolhidos e analisados.
Reconhecer a eficácia da monitoração ele-
trônica no controle dos digitadores, apesar de ser
um componente indiscutível da taylorização dos
CPDs, não implica negar que haja algum tipo de
resistência por parte dos envolvidos. Há algumas
estratégias que são desenvolvidas, ora pelos
supervisores, em grau hierárquico superior, ora pe-
los próprios digitadores, que conduzem à transfor-
mação dessas próprias normas e, conseqüentemen-
te, da interação e da organização no processo de
trabalho. Poderíamos dizer, concordando com
Anselm Strauss, que há uma ordem negociada en-
tre os agentes, em que intervêm estratégias criati-
vas aproveitando o caráter de incompletude da pró-
pria organização (1978). Apesar de que essa or-
dem negociada se manifeste mais com as inova-
ções tecnológicas que viriam a prescindir da pró-
pria digitação na entrada de dados ou requisitá-la
em menor grau, podemos detectar na própria fase
áurea dos CPDs alguns sinais dessas transforma-
ções. O primeiro deles é conferir ao processo de
controle da performance uma dimensão lúdica,
transformar a competição profissional numa
brincadeira.A competição por toques/hora não só
era ludicamente interpretada, mas seus resultados
se transformavam em metas desejáveis; digitadores
rápidos eram exemplos, conforme nos evidencia o
depoimento de Gaby:
Cheguei a fazer 23 mil toques, numa
noite eu digitei cento e tantos mil
toques e a hora que eles viram aquilo
Goiânia inteirinha ficou sabendo
disso! Goiânia tinha poucos Centros
de Processamento de Dados. Nós
trabalhávamos à noite, eu e minha
irmã, ela trabalhava na Caixego e eu
no Banco Real, e o pessoal chegava
para meu pai e minha mãe e falava:
“Olha a gente cria filho com o maior
carinho, e eles escapam pros lugar”.E
tinha homem e tinha mulher, eles
deduziam o que? O que as duas iam
fazer na rua? O povo não entendia,
hoje não, hoje mil e um trabalha de
madrugada, a noite toda, mas naquela
época era um absurdo trabalhar à
noite, e a maioria do serviço bancário
era feito à noite.
As palavras de Gaby expressam claramen-
te uma exposição de motivos: justifica-se um horá-
rio insalubre e exigências de produção que afron-
tariam normas básicas de ergonomia pelo reconhe-
cimento profissional que era conferido à
performance em toques/hora, sinal que legitimava
sua identidade como digitadora exemplar. Contu-
do, os profissionais mais experientes já sabem que
o escore no final do mês é um valor médio. Um
bom digitador pode controlar sua produção de
modo a compensar alguns dias com um trabalho
mais lento, parando diversas vezes, com outros dias
de digitação rápida e ininterrupta.
A negociação sobre as condições de traba-
lho muitas vezes extrapolava o ambiente da em-
presa e se deslocava para as associações e sindica-
tos. Contudo, nem sempre a ordem negociada co-
incidia com o que seria mais razoável para os
digitadores e, para esse resultado insatisfatório a
eficácia simbólica do vocabulário de motivos ti-
nha grande influência. O depoimento de Carô so-
bre as conseqüências práticas da “lei dos cinqüen-
ta dez” sobre o sistema de trabalho na digitação
evidencia o paradoxo de uma “ordem negociada”
desfavorável, do ponto de vista da manutenção da
força de trabalho, a médio prazo:
Não, até a gente não usa lá o 50/10,
a gente fez um acordo entre empresa
e sindicato e em vez do 50/10 dimi-
nuir uma hora, dá 90 minutos a dife-
rença, o que a gente descansa, traba-
lha as 5 horas e descansa quinze mi-
nutos, então no diminui a produção.
(...) Sair mais cedo, diminuir a carga,
não, por que se você aproveita o 50/
10, o que você vai fazer em 10 minu-
tos? Se você não pode sair da sala...
Isso foi um acordo que não foi só da
empresa, foi entre sindicato, empresa
e funcionário. Prefere e trabalha me-
lhor, sabendo que vai sair uma hora
mais cedo, do que ficar uma hora
digitando a mais.
O digitador, após anos seguidos de traba-
lho insalubre, acumulação de turnos e horas ex-
tras, acostuma-se a manter um padrão regular de
63
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
toques/hora, acima dos oito mil por hora básicos,
que é suficiente para uma margem de negociação.
Se aumentar o ritmo, pode trabalhar menos. Como
a lei garante dez minutos a cada hora, ele prefere
sacrificar a saúde e sair mais cedo, provavelmente
para outro turno de trabalho, do que descansar os
músculos e tendões, evitando as tenossinovites que
tanto afligem e incapacitam os digitadores.
Os supervisores têm evidentemente, con-
trole total sobre as estatísticas de um período de
trabalho, ainda que não tenham controle sobre todo
o processo.
6
Podem, portanto, relaxar o
monitoramento, retirando seu caráter ostensivo,
estrategicamente dissimulando a vigilância auto-
ritária. Os digitadores, por sua vez, chegam a pen-
sar que têm autonomia no controle de seu próprio
trabalho, bastando o bom senso e o domínio técni-
co adquirido com a experiência para se atingir a
produção desejada. Essa estratégia é eficaz, sem
dúvida, para a interação entre supervisores e
digitadores.
A valorização da disciplina e do controle
no ambiente de trabalho ocorria também de forma
crítica, sem a submissão entusiasta ligada a uma
assimilação como competição lúdica. Reconhecia-
se, pragmaticamente, o valor daquele controle como
fundamental para o bom funcionamento de um CPD
e, eventualmente, ampliava-se essa valorização para
outras atividades, já no âmbito do que designa-
mos aqui por profissão.
Havia também um tipo de resistência
concreta à monitoração eletrônica, que não se
consistia numa reação indireta por meio de
reivindicações trabalhistas junto a sindicatos e
associações. Tratava-se de manobras técnicas que
só poderiam ser realizadas com algum
conhecimento da informática e mediante alguma
relação com grupos hierarquicamente superiores,
como programadores ou analistas. Questionada
sobre a existência de técnicas pra aumentar a
velocidade no trabalho, Esther nos informa:
Não, o que existia era uma maneira
em que a gente burlava a estatística
da máquina. A gente apertava umas
teclas juntas e ali ela fazia: tá, tá, tá,
tá, tá, e ela contava pontos. Você
sabia? ((risos)) Então existia, você
apertava três teclas juntas, as vezes o
supervisor saía ou descuidava com
alguma coisa e você ia lá e segurava,
ali, enquanto você tava segurando ele
tava contando toques. A gente
conhecia isso e isso o povo fazia
mesmo ((risos)).
A valorização positiva do controle e da
disciplina ocorria nos profissionais que vieram a
ascender na carreira da informática, como
supervisores, programadores ou analistas. O novo
campo a ser explorado excluía, praticamente, as
pessoas que precisavam desempenhar outros tipos
de trabalho, ou mesmo trabalhar em mais de um
turno na digitação. Os que adquiriam
conhecimentos na área logo se tornavam
supervisores ou programadores, passando,
conseqüentemente a controlar e administrar a
produção dos colegas. A falta do conhecimento das
linguagens de programação e da operação do
sistema torna os digitadores e, em grau menor, os
próprios programadores e analistas, alienados em
relação ao próprio sistema que monitora,
intangivelmente, suas próprias performances. Aos
que não têm a possibilidade de acesso ao
conhecimento técnico, resta a desilusão e a
nostalgia de uma época em que a ocupação, ainda
nova no mercado de trabalho, garantia um bom
rendimento relativamente à baixa qualificação
exigida e ao número de horas trabalhadas. Datti,
por exemplo, que tem hoje vinte anos e começou a
trabalhar como digitação é cética com relação à
idéia de fazer carreira: “Na mesma área eu acho
que não, nunca pensei nisso não! Mas eu tô
querendo fazer vestibular, mas continuar nisso, eu
não sei não, pode até ser, mas acho pouco
provável”.
A digitadora Dorali, que trabalhou durante
a década de 80 principalmente em bancos de dados
de empresas particulares e birôs de terceirização,
chegando a acumular até jornadas de três turnos
diários, relata o que ganhou com o exercício da
profissão: “Depois de uns oito anos de serviço eu
já estava como braço meio estourado, meio que
bagunçadinho, mas nada que tenha me, tenha
assim ((pausa)), deformação. Eu sinto dor, quer
dizer, hoje se eu passar muito tempo no computador
eu sinto dor. Hoje eu não lavo uma roupa, eu não
dou conta de esfregar, não dou conta de torcer,
não dou conta de lavar uma vasilha, dar uma
areada, isso eu, não faço mesmo”.
DIGITADORES E “DIGITADORES” – MUDANÇAS
NA OCUPAÇÃO E NA IDENTIDADE
Alguns fatores, preponderantemente
relacionados à evolução tecnológica na informática,
conduziram à inviabilidade da manutenção dos
CPDs e a seu progressivo desaparecimento,
juntamente com a área de entrada de dados. O
primeiro deles foi a criação de bancos de dados
setoriais, possível graças ao surgimento de novas
técnicas de transmissão de dados utilizando
modems e linhas de fibra ótica. Outra fase do
64
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
desenvolvimento da informática compreendeu o
desenvolvimento dos sistemas de leitura ótica e
magnética, permitindo com que documentos como
cheques e boletos de pagamentos já contivessem a
informações sobre o cadastro do cliente e da
instituição. Assim, o próprio cidadão comum, como
usuário, passa a digitar os valores desses
documentos em caixas de atendimento on-line, que
se tornaram cada vez mais comuns.
A digitação de entrada de dados constitui
hoje uma função sazonal requerida em períodos
específicos, como na época de eleições ou em casos
de recadastramento de funcionários em grandes
empresas; concursos públicos representam outra
instância de contratação temporária de digitadores,
assim como épocas de matrícula na rede estadual
de ensino. Embora alguns digitadores ainda
acreditem na preservação de alguns “nichos” no
trabalho informático que permaneceriam residuais
à digitação na entrada de dados, além dos
contratos temporários, a tendência é reconhecer
que seu desaparecimento é iminente.
No entanto, a ocupação de digitar, quer
seja ou não realizada profissionalmente num
mercado de trabalho, ainda consiste um meio muito
eficiente para inserção de dados ou para se
comunicar com a máquina, inserindo linhas de
programação, por exemplo. Talvez os sistemas de
comando por voz não substituam a digitação
completamente, ou em todos as circunstâncias de
uso. A conservação do termo “digitador” é
testemunha dessa permanência do ato de digitar.
Alguns digitadores até acreditam que a função de
copiar textos empregando softwares de
processamento de texto corresponde às novas
funções da profissão de digitador: “Eu acho que
não é que não é mais necessário [o digitador de
entrada de dados]; é que hoje com tanta tecnologia,
com tantas máquinas, eu acho que tá ficando de
lado, eu acho que hoje manualmente já não é tão
exigido, mas aqui ainda existe alguns digitadores
que digitam texto, trabalho, eu mesmo tenho uma
filha que trabalha num departamento aqui”.(Teka)
A questão da indefinição da categoria
ocupacional do digitador traz vários problemas não
só para os profissionais envolvidos, mas para o pró-
prio sistema de classificação profissional que, no
Brasil, tem como suporte a Classificação Brasileira
de Ocupações. Levando em conta as considerações
anteriores, é coerente afirmar, como hipótese, que
haja um declínio de vínculos empregatícios na ocu-
pação de digitador, nos últimos dez anos, na cida-
de de Goiânia, similar ao que deve ter ocorrido
antes em outros centros que tiveram uma urbani-
zação relacionada ao processo de industrialização,
como São Paulo. Vejamos o que indica uma série
histórica obtida por consulta na base de dados da
RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), uma
das fontes mais confiáveis para a avaliação do
mercado formal de trabalho:
NOTAS
1
O presente texto já serviu de base para uma
comunicação, apresentada no GT Ocupações e
Profissões do XI Congresso Brasileiro de Sociologia
realizado na Unicamp em setembro de 2003.
2
Jordao Horta Nunes, coordenador da pesquisa,
teve uma experiência prévia como digitador na
entrada de dados, trabalhando regularmente nesta
ocupação em 1983 e depois no período 1986-88,
em vários birôs que prestavam serviços para a Cia.
Paulista de Força e Luz (CPFL), na época uma
companhia estatal que se encarregava da produção
e da distribuição da energia elétrica no interior do
estado de São Paulo.
3
Esse critério para admissão de novas informações
na base de triangulação foi inspirado em DAVIES
(2001: 78-9).
4
Empregaremos doravante a notação “digitador”
para designar essa nova categoria de profissionais
que não trabalham mais em sistemas de inserção
de dados.
5
Companhia de Desenvolvimento do Estado de
Goiás, empresa estatal que se encarregava do
processamento de dados de diversas instituições
prestadoras de serviços públicos (água, energia
elétrica, trânsito, receita, etc.).
6
Embora vários dos entrevistados ressaltem a
igualdade de tratamento e de condições entre os
digitadores, certamente havia distinções entre eles,
justamente no que se refere à precisão e rapidez,
geralmente adquiridas com a experiência. A
distinção entre júnior, sênior e master, usual para
os níveis do desenvolvimento (analistas e
programadores) transferia-se, em algumas
empresas, aos digitadores.
FIGURA 1. Digitadores: vínculos empregatícios.
Fonte: RAIS, MTE/SPPE a
65
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
Vemos que em São Paulo e no Rio há
tendência nítida de queda no número de vínculos
na digitação (CBO 3-42.40), no intervalo
considerado, entre 1995 e 2000. Em Goiânia,
Brasília e Belo Horizonte, cidades que têm em
comum o fato de serem cidades novas, capitais
planejadas e construídas sob interferência política
e econômica dos governos federal e estaduais, não
se verifica uma tendência decrescente. Como
explicar essa diferença em relação à tendência
decrescente tão nítida em outros centros na mesma
época? Podemos afirmar, a título de hipóteses, duas
possibilidades: a) a base da RAIS contabiliza os
vínculos; pode ocorrer, e isso é bem plausível, que
os digitadores de entrada de dados remanescentes,
nessas cidades, trabalhem mais de um turno e sejam
registrados mais de uma vez; b) os “digitadores”
de textos estão sendo registrados como digitadores
de entradas de dados (CBO 3-42.40), o que
configuraria um problema na CBO, além de um
problema na administração desses esta-
belecimentos;
1
c) Poderíamos também supor, nos
anos discrepantes (como 1998 para Goiânia e 2000
para Belo Horizonte), uma demanda sazonal em
razão, por exemplo, de um ano eleitoral ou de um
recadastramento no funcionalismo público,
exigindo pools de digitação e contratação de
trabalhadores. Contudo, essa hipótese parece
improvável, pois verifiquei, por exemplo, que no
ano de 1998 só foram registrados 20 digitadores
na condição de temporários, dentre mais de 1300
pela CLT.
A hipótese de uma designação incorreta
para os atuais “digitadores” de textos e sua
equiparação aos digitadores de entrada de dados
que são mencionadas na CBO nos é particularmente
interessante, porque está em jogo a identidade
ocupacional de milhares de pessoas, separadas em
dois grupos: as que originam da antiga base do
trabalho informático, da entrada de dados no ramo
da produção e as que hoje compõem um novo grupo
ocupacional, talvez até mais numeroso, que beira
a informalidade e está precariamente inserida num
mercado de trabalho que não é mais o da
informática.
Ainda que não façam parte propriamente
do trabalho informático e não estejam submissos
às mesmas exigências que os profissionais da antiga
área de entrada de dados, os “digitadores”
manifestam, talvez em razão das leis de proteção e
das propagandas nas próprias empresas sobre como
evitar as lesões por esforço repetitivo, maior
conscientização e cuidado com a postura e a
proteção da saúde do que os digitadores de CPDs.
Antonil, um dos “digitadores” entrevistados, relata:
“[faço] alongamento, desde a hora que eu acordo,
venho pra cá, alongamento, e depois aqui eu paro
pra fazer os alongamentos, às vezes passo direto
mas faço uma parada maior. (...) Já é automático,
quando chega a uma hora vai me dando aquela
canseira e eu tenho de levantar e dar uma
voltinha”. Entretanto, os problemas de LER são
freqüentes nos digitadores de textos, principalmente
porque as condições de trabalho nos
estabelecimentos de reprografia são muito
precárias. Ainda que os rendimentos desses
profissionais sejam comparativamente altos em
relação a seus colegas de CPDs, os “digitadores”
ampliam a lista de ocupações do setor informal.
Juntamente com os digitadores de entrada de
dados freelancers e contratados em caráter
temporário, os “digitadores”, mesmo os que são
registrados, se acomodam na precariedade das
relações e das condições de trabalho.
DISCUSSÃO
O vocabulário de motivos relacionado à va-
lorização da rapidez e precisão numa situação de
trabalho rigidamente controlada é bastante fiel à
experiência profissional dos digitadores. Analisan-
do esse vocabulário típico com base no discurso
dos entrevistados, desvelamos as condições de im-
putação e reconhecimento de um vocabulário que
remete a situações sociais específicas. O digitador
internaliza esse vocabulário de motivos e, ainda
que possa modificá-lo eventualmente e até
contestá-lo, ele permanece como padrão de refe-
rência. Aqueles que conseguem atingir níveis mais
elevados na carreira da informática, como progra-
madores ou analistas, chegam a uma concepção
mais abstrata do ato de digitar, que corresponde a
sua função num sistema de informação, ou seja, a
de um dispositivo mecânico de emitir sinais que
têm algum significado num contexto de lingua-
gem específico. Esther, por exemplo, ainda realiza
o ato que, em sua essência, é mecânico, de digitar,
mas em outro contexto. Insere sinais numa linha
de programação, numa rotina que irá executar fun-
ções num programa. Não precisa fazê-lo rápido,
nem precisa ter tanta precisão, pois pode voltar e
corrigir várias vezes. Porém deve ter consciência
do efeito que ocasiona cada comando que escreve
e do que cada comando representa no programa.
Assim, faz escolhas sobre os melhores meios para
atingir seus objetivos e, como cada programa rea-
liza alguma operação no sistema, toma decisões
práticas. O digitador de entrada de dados não toma
decisões, não precisa refletir sobre o que faz, já
que sua função é fazer corresponder um movimen-
to específico com um sinal específico, uma letra ou
66
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
um número. A operação não requer nem que com-
preenda ou mesmo leia as palavras que digita. Ele
não tem consciência do significado do documento
que está transcrevendo. Porém, se essa correspon-
dência de sinais e estímulos mecânicos falha, ou
não atinge uma freqüência determinada, há efei-
tos indesejados no sistema. Notamos, portanto, que
seu vocabulário de motivos, que se manifesta de
forma simples e aparentemente precária é, na ver-
dade, conciso e completo. No contexto de um CPD
nos anos 80, o digitador deve ser rápido, preciso e
cumprir regras, pois sua função é estritamente me-
cânica.
As estratégias de “negociação da ordem”
demonstram também como o digitador que,
intuitiva ou racionalmente, captava as regras do
jogo, não tinha problemas com LER nem tampouco
sofria punições por falha na produção. Trabalhando
na média de toques/hora, esse profissional tinha a
velocidade do sistema, enquanto os muito rápidos
e que trabalhavam em mais de um turno
fatalmente viriam a ter doenças ocupacionais. A
capacidade de conviver com a monitoração
eletrônica e manter uma estabilidade física e
emocional no ambiente de trabalho constituía um
tipo de conhecimento prático que nem todos
chegavam a desenvolver. O reconhecimento efetivo
da “lei 50/10” no início dos anos 90 conduziu a
uma situação que, à primeira vista, pode parecer
um paradoxo, mas que é bem coerente com a idéia
de que o sistema não precisa de digitadores ultra-
rápidos, mas dos que conseguem manter uma
velocidade média por mais tempo de trabalho. A
entrevista de Peter evidencia uma das estratégias
para garantir uma “nova ordem” na vigência da
“50/10”:
Peter: Depois que veio um
superintendente para cá, esse acabou
com a digitação; ele chamava quem
digitava treze mil toques era burro, por
que a lei mandava oito e tinha que
ser oito e não treze mil; treze mil você
tava estragando a sua saúde, como
tem muita gente aí, que você vê que
não tem movimento das mãos, devido
a isso, excesso de toques.
A “nova ordem” nos já decadentes CPDs
não envolvia apenas o respeito às normas de
proteção e à ergonomia, mas trazia já novas
necessidades na capacitação técnica dos
profissionais do mais baixo escalão do trabalho
informático. A entrada de dados on-line já era uma
realidade e os microcomputadores em rede
começavam a tomar o lugar dos mainframes. O
digitador vai cedendo seu lugar ao operador de
micro, que requer, evidentemente, maior
qualificação para operar com alguns aplicativos
básicos.
Ainda resta um lugar para a digitação na
entrada de dados e a valorização exclusiva de uma
habilidade mecânica num profissional? Sim, e isso
já ocorre em uma nova forma de organização do
trabalho, que vem sendo designada por
teletrabalho (teleworking ou telehomeworking). A
forma mais simples de ocupação no teletrabalho é
a leitura de e-mails: após enviar algumas
informações a uma companhia que paga para ler
e-mails, o teletrabalhador passa a receber
mensagens de outras companhias clientes que
utilizam o banco de dados formado por todos os
inscritos na primeira. Ganha-se por cada e-mail
enviado à empresa de teletrabalho, replicando a
mensagem de propaganda recebida e provando,
assim, que esta foi “lida”. Outra forma emprega
softwares especiais que detectam banners
(pequenas faixas de propaganda, em geral
utilizando algum tipo de animação, que
acompanham páginas em hipertexto na maioria dos
sites pela rede). O teletrabalhador simplesmente
“navega” pela rede, o mais variada e rapidamente
possível. Ganha-se pela quantidade de anúncios
“vistos”, contabilizados automaticamente pelo
software, e também pelo tempo conectado em rede.
Pode-se também ganhar dinheiro indicando outros
teletrabalhadores, o que constitui um “marketing
multinível”, ampliando cada vez mais o banco de
dados e a rede de colaboradores e usuários. Essas
formas de ocupação, além de inúmeras outras
possíveis, constituem uma espécie de entrada de
dados, em que o teletrabalhador, analogamente
aos digitadores dos terminais “burros” na época
dos CPDs, não tem o menor controle do sofisticado
processo de marketing e transferência de capital e
lucros envolvida. Na ilusão de estarem trabalhando
livre e autonomamente, essas pessoas passam horas
diárias em condições ergonomicamente deficientes,
geralmente subaproveitando algum espaço
disponível em suas próprias residências e acabam
se sujeitando a altas cargas horárias de trabalho,
sem a menor proteção para sua saúde e segurança.
Nesse sentido, os teletrabalhadores se aproximam
dos “digitadores” de textos que consideramos antes.
A esses profissionais falta, sobretudo, a garantia,
em termos de direitos, que é fornecida pelo trabalho
formal: representação sindical, férias, 13º salário,
FGTS, ou seja, um conjunto mínimo de direitos
definidos em relação a uma estratificação
ocupacional legitimada que Wanderley Guilherme
dos Santos muito bem designou como “cidadania
regulada” (1979).
67
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 57-68; set/dez.2004
NOTAS
1
O caso de erro na atribuição da ocupação
explicaria, certamente, as discrepâncias no caso
do Rio de Janeiro em 1999 e de Belo Horizonte em
2000. A Datamec, empresa responsável pela
manutenção e supervisão da RAIS realizou uma
investigação para averiguar a discrepância
apurada, constatando declarações equivocadas por
algumas empresas e sugerindo que não se considere
os vínculos apontados, o que nos permite afirmar
a tendência decrescente verificada em outras
capitais.
REFERÊNCIAS
ABBOTT, A. The System of Professions. An Essay
on the Division of Expert Labor. Chicago: University
of Chicago, 1988.
BECKER, H. S. The outsiders. New York: Free, 1963.
BRANNEN, J. (Ed.). Mixing Methods. Qualitative
and Quantitative Research. Hants: Aldershot/
Brookfield, 1992.
DAVIES, P. H. J. Spies as Informants: Triangulation
and the Interpretation of Elite Interview Data in
the Study of the Intelligence and Security Services.
Politics. Brighton, v. 21, n. 1, p. 73-80, 2001.
DENZIN, N. Sociological Methods: a Sourcebook.
New York: McGraw-Hill, 1978.
FREEMAN, C. Designing women: corporate
discipline and Barbados’s Off-Shore Pink-Collar
Sector. Cultural Anthropology. Seattle, v. 8, n.2, p.
169-186, 1993.
GOFFMAN, E. Asylums. Essays on the Social
Situation of Mental Patients and Other Inmates.
Garden City: Anchor, 1961.
HULTIN, M. Some Take the Glass Escalator, Some
Hit the Glass Ceiling? Career Consequences of
Ocupational Sex Segregation. Work and
Occupations. Nashville, v. 30, n. 1, p. 30-61,
February 2003.
LARANGEIRA, S. M. G. Reestruturação produtiva
no setor bancário: a realidade dos anos 90. Educa-
ção e Sociedade. Campinas, p. 111-138, 1990.
LAZZAROTTO, G. D. R. A organização do trabalho
e a construção do sujeito: o caso da digitação, uma
apreciação crítica da psicologia. Porto Alegre, 1992.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
LYMAN, S. M.; SCOTT, M. B. Accounts. In: A
Sociology of the Absurd. 2ed. Dix Hills: General
Hall, 1989 [1968]. p. 112-132.
MERLO, A. R. C. A informática no Brasil: prazer e
sofrimento no trabalho. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1999.
MERLO, A. R. C. et al. O trabalho entre prazer,
sofrimento e adoecimento: a realidade dos porta-
dores de lesão por esforços repetitivos. Psicologia
& Sociedade. Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 117-136,
jan./jun. 2003.
MILLS, C. W. Situated Actions and Vocabularies
of Motive. In: Stone, Gregory P. e Farberman, Harvey
A. (eds.) Social Psychology through Symbolic
Interaction. Waltham: Xerox College, 1970 [1940],
p. 472-480.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Regis-
tros Administrativos: RAIS e CAGED. Brasília: MTE,
SPPE/DES/CGETIP, 1999.
MIRANDA, T. G. Expropriação e segregação: traje-
tória de vida e representações de um grupo
migrante em Goiás. Belo Horizonte, 1984. Disser-
tação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal de Minas Gerais.
RAPKIEWICZ, C. E.; SEGRE, L. M. Mercado de
Trabajo y formación de recursos humanos en
tecnologia de la información en Brasil: ¿encuentro
o desencuentro?.Serie Desarollo Produtivo.
Santiago de Chile, v.117, p.1-58, 2001a.
RAPKIEWICZ, C. E.; SEGRE, L. M. Tecnologia y
Proceso de Trabajo: la Restructuración y
precarización del trabajo en Informática. Boletín
de Política Informática. Ciudad de México, v. 24,
n.6, p.51-71, 2001b.
RAPKIEWICZ, C. E.; SEGRE, L. M. Reestruturação
Produtiva na Área de Informática: Evolução ou
Precarização do Trabalho? Trabalho apresentado
no XXIII Encontro Nacional da Anpocs. Caxambu,
1999.
SALLES, M. M. Lesões por esforço repetitivo em
operadores de computador. Brasília, 1995. Disser-
tação (Mestrado em Psicologia) – Universidade de
Brasília.
68
Nunes, J.H.; Castilho, J.A.S. “Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional”
SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça – A polí-
tica social na ordem brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1979.
SEGNINI, L. R. P. Mulheres no trabalho bancário:
difusão tecnológica,qualificação e relações de gê-
nero. São Paulo: Edusp, 1998.
SEGNINI, L. R. P. Mulher em tempo novo:
mudanças tecnológicas e nas relações de trabalho.
Campinas, 1996. Tese (Livre Docência em
Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas.
SOARES, A. S. Work Organization in Brazilian Data
Processing Centres: Consent and Resistance.
Labour, Capital and Society. Montreal, v. 24, n. 2,
p. 154-183, 1991.
SOARES, A. S. A organização do trabalho
informático. São Paulo, 1989. Dissertação
(Mestrado em Administração) – Pontifícia Univer-
sidade Católica.
STRAUSS, A. L. Negotiations, varieties, contexts
processes, and social order. San Francisco: Jossey-
Bass, 1978.
STRAUSS, A. L. Espelhos e máscaras. A busca de
identidade. Trad. de Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: Edusp, 1997 [1959].
Jordão Horta Nunes é professor Adjunto na Uni-
versidade Federal de Goiás.
O endereço eletrônico do autor é:
jordao@fchf.ufg.br
Juliana Abrão da Silva Castilho é mestranda no
Programa de Pós-graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás
Horta Nunes e
Juliana Abrão da Silva Castilho
Digitação na entrada de dados:
transformações na identidade ocupacional
Recebido: 23/06/2004
1ª revisão:4/10/2004
Aceite final: 25/10/2004