Resumo: Este artigo trata da análise de um processo-criminal em Cunha, São Paulo, 1870, aberto para investigar o que foi chamado de Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação. Os escravos envolvidos foram acusados de matar pessoas como prática de lições de feitiçaria, em investigação iniciada pela senhora do principal acusado. A escola envolvia escravos de várias fazendas locais, além de libertos que moram na região. A base teórica usada são, principalmente, textos de Max Weber sobre religião e magia para tentar observar as condições de possibilidade para a crença compartilhada por senhores e escravos no caso analisado. Palavras-chave: escravidão; magia; acusações de feitiçaria. Abstract: This article deals with the analysis of a criminal process, in Cunha, São Paulo, 1870, open to investigate what was called by the School of Witchcraft Crown of Salvation. The slaves involved were accused of killing people as practicing witchcraft lessons in an investigation initiated by the lady of the main accused. The school involved slaves from several local farms, as well as freedmen living in the area. The theoretical basis used are mainly texts by Max Weber on religion and magic to try to observe the conditions of possibility for the shared belief by masters and slaves in the case analyzed. Max Weber se notabilizou nas Ciências Sociais, dentre outros fatores, por abordar a religião como fenômeno social, entrelaçado a elementos de ordem diversa, centrais na sua compreensão. Momentaneamente, ele isola o fenômeno para investigá-lo e, assim que possível, relacioná-lo a tantos outros. Uma questão de estratégia analítica, de método. Para Weber, a crença na salvação, a conformação das regras de autorização para alguém ser mágico, feiticeiro ou sacerdote, as maneiras de produzir os fundamentos de sua reputação, da crença em suas habilidades extraordinárias, a sustentação social moral que imbui de poder um messias, as camadas letradas, os especialistas, que detém as rédeas da argumentação teológica e as justi cativas rituais, são, em alguma medida, aspectos dos universos chamados de religiosos. Esses seriam ambientados a partir dos desejos nutridos nas pessoas para responderem de forma confortável aos seus medos, às suas angústias. Tudo isso socialmente concebido e performatizado, experimentado com paradoxos de diversos níveis de complexidade. Para Weber, a sociogênese da crença na magia não ocorre em etapas evolutivas numa única temporalidade ahistórica, mais sim em processos sociais os mais diversos-alguns de cunho mundial, outros territorialmente mais localizados. O tempo também é socialmente construído e vivido, e as investigações de Weber trazem recomendações teóricas e metodológicas para observarmos e analisarmos os agentes sociais em relação nos seus devidos contextos históricos. Neste artigo, viso a fornecer alguns instrumentos para avaliar situações nas quais indivíduos se valeram de recursos mágicos e processos de magicização do mundo social para atingir os ns por eles almejados, num processo de busca de superação de angústias, dramas dolorosos. Terei como corpo analítico central parte de um caso ocorrido na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869 (Processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, ano 1870). Desde minha tese de doutorado não revisitava essa documentação, e esta é a primeira vez em que publico algumas análises, que serão completadas em outros artigos em fase nal de elaboração, parte de um livro que pretendo publicar com investigações e interpretações mais amadurecidas intelectualmente sobre o caso. A base teórica das análises neste artigo são algumas observações de Max Weber, contidas nos seus estudos sobre as condições sociais de possibilidade para crença na magia e as investiduras sociais que os candidatos a mágicos devem ter para que sejam reconhecidos como portadores de poderes mágicos, para os que neles acreditam. De maneira alguma tratarei de percorrer a vasta bibliogra a sobre a magia, tema central na Antropologia, muito menos sobre a historiogra a sobre religiosidade e escravidão nas Américas e Caribe. A proposta é me ater em textos que permitam pôr em relevo o quanto os procedimentos mágicos são constitutivos do funcionamento do mundo social, buscando compreender o que me parece ser uma densa trama de relações, presentes nas narrativas que constam nas diferentes peças processuais que compõem o já referido documento. Dessa forma, a perspectiva por mim adotada é procurar identi car em certos antropólogos aquilo que é útil para pensar os materiais de pesquisa, enfatizando questões inspiradas em textos especí cos sobre religião de autoria de Max Weber. O que de Max Weber ajuda na análise do caso de Cunha? Religião é ação no mundo, para Weber, mas as motivações dos éis adeptos seguem os mais diversos protocolos, baseados em regras morais compreendidas empiricamente. Tal a rmação não vale somente para o que denominou por grandes religiões mundiais, às quais ele dedicou volumes particulares. Tal maneira de tratar pesquisas sobre religião coloca o pesquisador diante do impedimento de não universalizar valores morais. Não percebo, nesse sentido, um caráter etnocêntrico em Weber, nem mesmo observo antropólogos sob sua in uência, tendo feito uso de seus apontamentos ao se debruçarem no entendimento de seus materiais de pesquisa. Citarei dois exemplos. Lygia Sigaud (1979) buscou avaliar as condições morais de interpretação de formas de remuneração e de lidar com dinheiro entre trabalhadores em engenhos de cana na Zona da Mata de Pernambuco, observando forte presença de justi cativas morais para